“Cancope” a comunidade onde nutre a esperança: Transformações sociais na vida cotidiana de uma comunidade rural do distrito de Moatize, Província de Tete, Moçambique.



Albino José Eusébio [!]


Nota introdutória

Estava na vila de Moatize, província de Tete, região central de Moçambique, de repente recebi uma chamada telefónica de um membro da Associação de Apoio e Assistência Jurídica às Comunidades (AAAJC) informando-me da visita que iam realizar no dia seguinte, as 6 horas da manhã, à “comunidade” de Cancope. Ele queria saber se eu estava interessado em ir junto. Eu estava dialogando com a AAAJC sobre o trabalho que essa associação tem desenvolvido com as comunidades afetadas pelos projetos de mineração, no âmbito da realização da pesquisa de campo referente a minha tese de doutorado, cuja temática reflete sobre os deslocamentos compulsórios das comunidades locais em consequência da implementação dos grandes projetos de mineração.

Era no período da tarde quase ao anoitecer quando recebi a ligação, eu já estava me preparando para a “noitada” nas barracas do mercado da vila de Moatize. La era o meu destino preferido porque a cerveja estava na promoção de 3/100 (3 cervejas a 100 meticais[1]). No resto dos bares da vila uma cerveja estava a 50 meticais em diante. A semana tinha sido exausta e uma cerveja não faria mal a ninguém naquela realidade cotidiana de Moatize caraterizada - parafraseando as palavras de Maria Eugenia Murilo, protagonista do romance “Rainhas da noite” do escritor e historiador João Paulo Borges Coelho (2013) – por um “calor infernal”. Por outro lado, as noitadas abriam um espaço de sociabilidade (SIMMEL, 1983) e me permitiram obter diversas informações sobre a dinâmica e transformações sociais atuais de Moatize, informações essas, que estão sendo enriquecedoras na minha tese de doutorado. Aceitei o convite e tive que informar aos meus de amigos de Moatize que naquela sexta-feira eu ficaria em casa, porque teria um compromisso logo cedo as 6 horas da manhã.

Pontualmente na hora combinada a equipe da AAAJC já estava na vila, entrei no carro e depois de aproximadamente 20 minutos de viagem e em meio a um verde contemplativo das árvores nos últimos 5 minutos lá estávamos nós na comunidade de Cancope. Foi desse modo que se deu o meu primeiro contato com aquela comunidade que se localiza no distrito de Moatize e que desde aquele momento passou a fazer parte das memórias da minha experiência de campo. Neste relato me proponho a falar dessa comunidade, destacando alguns aspetos da sua vida cotidiana e os efeitos sociais que estão sendo provocados por “forças exteriores” ligadas aos projetos de “desenvolvimento” e “progresso” nacional[2].

Figura 01: Comunidade de Cancope

Figura 01: Comunidade de Cancope

A vida cotidiana em Cancope

Nas conversas que tive com membros da comunidade fiquei sabendo que Cancope significa “carinha” ou “cara pequena” na língua nhúngue, a língua falada na comunidade e uma das mais faladas não só, no distrito de Moatize, mas também, em toda Província de Tete. Contudo a relação do nome com a comunidade é mais profunda que isso. Segundo relatos orais da própria comunidade desde os tempos imemoriais aquela área sempre foi uma terra de “mulheres bonitas”. A beleza das mulheres da comunidade “enfeitiçava” os homens de outras localidades que por diversas eventualidades se deslocavam para aquela área. Estes casavam, fixavam residência e jamais regressavam para as suas áreas de origem.

Foi o que aconteceu com o avô do líder da comunidade,

“… no meu caso, o meu avô que gerou meu pai veio da [República da] Zâmbia para aqui, ele passou antes por [cidade de] Tete, veio via Matema, entrou em Cancope via [localidade de] Benga, onde era “Sipaio”, quando veio aqui em Cancope e conheceu a minha avó, casou e ficou de vez aqui. Gerou meu pai, irmãos do meu pai, envelheceu e morreu aqui mesmo”.

O pai de um dos interlocutores membros da comunidade é originário de uma área chamada Nhatoto, por alguma eventualidade deslocou-se a Cancope, casou e “ficou de vez”. O mesmo aconteceu com o avô materno de um segundo interlocutor que “saiu de Malangue distrito Changara [província de Tete] para aqui, casou e ficou de vez”. Então Cancope significa naquele contexto, segundo relatos da própria comunidade, “cara bonita”. Ou terra das mulheres com “cara bonita”. Ou simplesmente terra das mulheres bonitas.

Cancope é uma comunidade camponesa[3] na sua forma de organização, produção e reprodução social e econômica e conta com aproximadamente 200 agregados familiares nucleares (pai, mãe e filhos). A agricultura constitui a base da sua reprodução socioeconómica. Uma parte da produção agrícola é destinada ao mercado da vila de Moatize, escoado segundo relatos da própria comunidade através dos diversos “corta-matos” (vias alternativas comunitárias que normalmente são menos extensas que as vias oficiais de acesso) que permitem uma chegada rápida à vila de Moatize.

Uns dos produtos que a comunidade destina ao mercado de Moatize é o carvão vegetal, malambe e maçanica. Segundo o líder da comunidade,

…muitos [homens] fazem carvão vegetal empacotam num saco e carregam para lá [mercado de Moatize], esses jovens tem meios circulantes, bicicletas, amarram dois ou três saquitos [de carvão] empurram até lá [mercado de Moatize] vendem ganham uns 100 [meticais] ou 200 [meticais] e compram um galão de milho ou feijão e voltam para casa. As senhoras também fazem as suas hortícolas, melancia; recolhe malambe, aquele fruto de embondeiro, lá no mato ou maçanica no ano que der bem, carregam para o mercado vende consegue alguma coisa, uns 20 ou 30 [meticais], compram sal, compram mais outra coisa, e voltam para casa.

Esse processo era facilitado, até bem pouco tempo, por essas vias alternativas os “corta-matos”. Importa realçar que os “corta-matos” facilitavam também, segundo relatos da própria comunidade, o acesso a certos serviços públicos como, por exemplo, aos serviços de saúde.

O “ribeirinho” (riacho) Chiwhala constituía a principal fonte de abastecimento de água para comunidade, é nas margens desse ribeirinho onde eram construídos os poços “tradicionais” para obtenção de água potável. Em determinados períodos de muita seca a água dos poços construídos nas margens desse riacho servia de base para a irrigação na produção agrícola. Contudo atualmente “forças e atores exteriores” ligados a um programa de “desenvolvimento” e “progresso” nacional têm interferido negativamente na realidade de vida cotidiana dessa comunidade. “…desde que estas empresas chegaram nós já não estamos gozar aquela vida da maneira que era [antes]” – disse um dos membros da comunidade.

Figura 02: Celeiro onde se armazena a produção após a colheita.

Figura 02: Celeiro onde se armazena a produção após a colheita.

Figura 03: Semente de melancia sendo secada. A melancia é um das culturas produzidas na comunidade, a sua semente quando secada, pilada e transformada em “farinha” constitui ingrediente principal de um dos pratos mais apreciados na comunidade, uns “bolinhos cozidos” chamados de <em>chiwombo.</em>

Figura 03: Semente de melancia sendo secada. A melancia é um das culturas produzidas na comunidade, a sua semente quando secada, pilada e transformada em “farinha” constitui ingrediente principal de um dos pratos mais apreciados na comunidade, uns “bolinhos cozidos” chamados de chiwombo.

Transformações sociais na vida cotidiana da comunidade de Cancope

A comunidade de Cancope encontra-se dentro da área concessionada ao “Projeto de Benga”, mas sofre efeitos sociais e ambientais do “projeto de Moatize”, ambos referentes à exploração de carvão de mineral. O projeto de Benga é atualmente operado por um consórcio de empresas estatais Indianas (Steel Authority of India Limited, Coal India Limited, RashtriyaIspat Nigam Limited, National Minerals Development Corporation Limited e National Thermal Power Corporation Limited) denominado International Coal Ventures Private Limited (ICVL) que comprou no ano de 2014 o total da percentagem das ações da mineradora anglo-australiana Rio Tinto. Esta havia comprado no ano 2012 o total das ações da multinacional Riversdale Mining que foi a primeira concessionaria. A empresa possui uma licença de concessão mineral adquirida em 2009 para uma área de 4, 560 hectares - incluindo a área pertencente por ocupação imemorial a comunidade de Cancope, - num volume de investimento estimado em aproximadamente 800 milhões de dólares (SELEMANE, 2010; MOSCA & SELEMANE, 2011; MATOS & MEDEIROS, 2013; MIMBIRE, 2016)

O “Projeto de Moatize” de exploração de carvão mineral, é operado pela empresa Vale Moçambique, pertencente a multinacional brasileira Vale, com um investimento atual estimado em aproximadamente dois biliões de dólares sendo o maior projeto de investimento no setor mineiro no país. A Vale possui uma licença de exploração mineral adquirida em 2007 numa área estimada em 23 780 hectares. A empresa prevê um investimento final de aproximadamente oito biliões de dólares com a implementação do plano Moatize II que consiste na construção de ferrovia de 912 Km de Moatize à Nacala-Porto passando pela República do Malawi e do porto de escoamento de carvão de Nacala, província de Nampula, Região Norte de Moçambique. De acordo com a jornalista Amanda Rossi (2015) o valor de investimento estimado torna até então o projeto de Moatize no maior investimento corrente do Brasil no continente africano.

A implementação desses projetos se enquadra dentro de uma lógica de desenvolvimento que vem sendo adotada em Moçambique que, tal como na Amazónia Brasileira (LOUREIRO, 2009), vem cada vez mais se focando na exploração e exportação de commodities. Para além do sector de mineração, destacam-se no âmbito dessa lógica de desenvolvimento investimentos externos nas áreas de hidrocarbonetos e agronegócio. De 2009 a 2014, por exemplo do total de investimento atraído pelo Estado moçambicano, aproximadamente 70% foi destinado ao sector extrativo. (MIMBIRE, 2016). Os investimentos na área de hidrocarbonetos foram incentivados pela descoberta de significativas quantidades gás natural na Bacia do Rovuma, Região Norte de Moçambique estimada em aproximadamente 200 trilhões de pés cúbicos (MIMBIRE, 2016). Com essas quantidades Moçambique conseguiu atrair para este setor empresas multinacionais como petrolífera italiana ENI, a empresa petrolífera americana ANADARKO, bem como a também americana EXXON MOBIL, esta considerada a maior multinacional privada do setor de petróleo e gás no mundo (MINBIRE, 2016).

No área do agronegócio se destaca o programa ProSAVANA. Um projeto de cooperação trilateral entre a Japanese Internacional Cooperation Agency (JICA), a Agência Brasileira de Cooperação (ABC) e o Ministério da Agricultura de Moçambique (MINAG), que busca alavancar o “desenvolvimento agrícola” do Corredor de Nacala. Província de Nampula, Região Norte de Moçambique. O ProSAVANA é uma iniciativa que se enquadra, segundo Fingermann (2013) nos princípios da Cooperação Sul-Sul da política externa brasileira, com o objetivo de incentivar a “transferência de tecnologia de conhecimento técnico e científico na área de agricultura tropical (FINGERMANN, 2013) e de políticas públicas (SANTARELLI, 2016) entre países do Sul. O programa ProSAVANA tem sido alvo de vários estudos e reflexões críticas de alguns pesquisadores académicos (FUNADA-CLASSEN, 2013a, 2013b, 2013c; SANTARELLI, 2016) e diversas organizações da sociedade civil, como a AçãoAcadémicaparaoDesenvolvimentodasComunidadesRurais (ADECRU), a AssociaçãodeApoioeAssistênciaJurídicaascomunidades (AAAJC), Comissão DiocesanadeJustiçaePazdeNacala (CDJPN), bem como a Justiça Ambiental, que temem, na sua visão, um processo de usurpação do território dos pequenos agricultores e agricultores familiares.

A abertura para o amplo investimento estrangeiro em Moçambique nos remete a década 80 com a introdução do liberalismo económico tendo como marco a adesão de Moçambique as instituições de Bretton Woods e que marcou também o fim de um sistema económico de planificação centralizada inerente a uma orientação política socialista adotada após a independência, contudo o avanço dessa lógica de desenvolvimento que tem na exploração e exportação de commodities como um dos setores dinamizadores teve efetividade prática a partir anos de 2001 e 2002 com a aprovação da lei nº 03/2001 de 21 de Fevereiro e da lei nº 14/2002 de 24 de Julho então novas leis de petróleo e de minas respetivamente[4]. Essas leis estabeleceram um contexto jurídico específico que permitiu na prática a possibilidade de um crescimento rápido dos setores de mineração e do petróleo dando espaço para a materialização dessa lógica de desenvolvimento. A partir desse período começaram a se registar na área de mineração, por exemplo, um aumento de investimentos que variam de 400 milhões de dólares em diante.

Importa frisar que a aprovação dessas leis foi consequentemente acompanhada com a “inferiorização” dos direitos de território das comunidades locais inerentes a ocupação histórica imemorial ou datada que haviam sido consagrados pela a lei de terras (lei nº 19/97, de 1 de Outubro). Vejamos: com a aprovação da lei de terras (lei 19/97 de 01 de Outubro) o ordenamento jurídico moçambicano deu um grande avanço na preservação dos direitos de territórios das comunidades locais inerentes a ocupação história seja imemorial ou datada. Ao consagrar o direito de uso e aproveitamento de terras para as comunidades locais por ocupação segundo as normas e práticas costumeiras.

A lei de terras antecipou o pluralismo jurídico em Moçambique, que só teve respaldo legal com a Constituição de 2004. Tal como evidencia economista moçambicano José Negrão quatro premissas fundamentam a atual lei de terras: a eliminação da possibilidade de (i) surgimento dos “sem terras”, (ii) dos “latifundiários ausentes” e o aluguer de terra como forma de sobrevivência; (iii) a inclusão da “prova oral” em pé de igualdade com título[5] para fim de reconhecimento dos direitos de ocupação (iv) e a incorporação dos direitos costumeiros de acesso e uso da terra (NEGRÃO, 2002, pp. 19-20). Para o autor a lei de terra de Moçambique é uma das mais progressivas ao assegurar o direito de uso e aproveitamento da terra aos agricultores que praticam a sua agricultura e demarcam as suas terras através das práticas costumeiras assegurando desse modo o acesso a terras aos mais vulneráveis (FUNADA-CLASSEN, 2013c). Contudo com a aprovação da lei 14/2002, de 26 de Junho (então lei de minas), por exemplo, regista-se um retrocesso nessas garantias.

Apesar de essa lei destacar que a ocupação da terra necessária para a realização de atividade mineira é regulada pelas disposições sobre o uso e aproveitamento da terra constantes da Lei nº 19/97, de 1 de Outubro[6]. As suas ressalvas inferiorizam os direito do território das comunidades locais inerentes a ocupação imemorial ou datada ao destacar, por exemplo, que (i) “o uso da terra para operações minerais tem prioridade sobre outros usos da terra quando o benefício económico e social relativo às operações mineiras seja superior”[7]; (ii) “no caso de uma área designada de senha mineira ser declarada ou ser emitida uma concessão mineira ou certificado mineiro, sobre terra sujeita a direitos de uso e aproveitamento da terra, esses direitos anteriormente existentes são considerados extintos após o pagamento de uma indemnização justa e razoável ao titular dos direitos anteriores, pelo Estado, no caso de uma área de senha mineira, e pelo titular do direito mineiro, no caso de concessão mineira ou certificado mineiro”[8]. (iii) “Nos casos em que o Estado considere o benefício económico e social relativo às operações mineiras superior aos interesses das comunidades instaladas nas zonas de interesse mineralógico, essas comunidades ficam obrigadas ao dever de ceder a sua posição jurídica a favor dos titulares dos projetos mineiros, por os seus direitos de uso e aproveitamento da terra se considerarem extintos, ainda que tal facto só possa ter lugar, após o pagamento de uma indemnização, por parte do Estado ou dos titulares das licenças de exploração, consoante se trate de título de senha mineira, de concessão mineira ou de certificado mineiro” (CAMBAZA, 2009) só para citar alguns exemplos.

Neste contexto, olhando para o setor mineiro, podemos dizer que, a aprovação da nova lei de minas em 2002 foi um significativo evento para o avanço prático dessa lógica desenvolvimentista em Moçambique que tem os “grandes projetos de mineração” como um dos setores dinamizadores, na medida em que deu mais prioridade a atividade de mineração em detrimento de outras formas de uso e aproveitamento da terra, dando amparo legal para a “colonização do território de ocupação imemorial ou datada das comunidades locais” e colocando, tal como destaca o geografo moçambicano Elmer Agostinho Carlos de Matos, desse modo “os interesses das comunidades abaixo dos interesses do capital, passando a considerar toda exploração mineira, viável economicamente, como tendo primazia até mesmo sobre as formas de subsistência das comunidades locais” (MATOS e MEDEIROS, 2013, p. 244).

É por essa razão que um dos efeitos sociais diretos desses projetos de mineração são os deslocamentos compulsórios[9] das comunidades locais. A implementação da primeira fase do projeto de Moatize, inerente a instalação da mina, obrigou, por exemplo, ao deslocamento compulsório de 1365 famílias dos bairros Chipanga, Mithethe, Bagamoyo e Malabwé no distrito de Moatize. Deste número 717 famílias foram deslocadas para o Centro de Reassentamento de Cateme, 289 para o bairro 25 de Setembro, o restante foram deslocadas mediante indenização (MOSCA e SELEMANE, 2011; SELEMANE, 2010; Human Right Watch, 2013). Importa frisar que o número de populações locais compulsoriamente deslocadas pelo projeto de Moatize tenderá a crescer a medida em que se for avançando para segunda fase do projeto, designada de Moatize II, que contempla a construção da ferrovia Moatize à Nacala e do porto de escoamento de carvão de Nacala, província de Nampula, região norte de Moçambique.

Por sua vez, o projeto de Benga deslocou compulsoriamente para Mualadzi, Posto Administrativo de Kambulatsitsi, Distrito de Moatize, que se localiza a 4 km de Cateme e 40 km da Cidade de Tete a capital da Província de mesmo nome (MOSCA e SELEMANE, 2011), aproximadamente 600 famílias. A comunidade Cancope apesar de se encontrar na área concessionada ao projeto de Benga, não foi ainda compulsoriamente deslocada por se encontrar atualmente longe da área atual da mina de exploração de carvão, o que evidencia que o deslocamento compulsório é uma possibilidade futura.

Relatos da comunidade indicam que a instalação e ampliação da mina do projeto de Moatize teve como consequência o enceramento dos “corta-matos” que permitiam o rápido acesso a vila de Moatize, obrigando-lhes a percorrer vias mais longas e desperdiçando mais tempo para a escoamento de produtos para a venda no mercado e posterior compra de outros produtos, bem como para a acesso de vários serviços públicos, como por exemplo, os serviços saúde. “…a nova via [aberta pela empresa em substituição dos corta-matos encerrados] ficou mais longo, extensão muito alargada; a pé e a pessoa doente ou com doente é muito difícil” –disse um dos membros da comunidade.

No âmbito do projeto foi também construída uma “vala” que serve de depósito de “dejetos”, “que se encontra instalada a aproximadamente 1Km a “montante” (numa altitude mais alta) da comunidade de Cancope, que por sua vez se encontra a “jusante” (numa altitude mais baixa). Segundo relatos da comunidade no período chuvoso a agua desse depósito de dejetos transborda. Inicialmente contaminou o riacho Chiwhala principal fonte de abastecimento de água para a comunidade. “…nos sempre fizemos nossos poços para agua na beira do rio para consumo, a água quando transbordou […], veio contra os poços, e já não dava para beber” – disse o líder da comunidade.

Num segundo momento contaminou as “machambas” e a produção da comunidade. Tal como destacou o líder da comunidade,

…quando reclamamos pela contaminação dos rios e consequentemente pelos poços de água potável a empresa fechou os caminhos onde a água transbordava até o rio. Foi quando assustamos aqui, provocaram outro problema ali [nas machambas]. Quando chovia transbordava e a água percorreu outros caminhos que chegaram até as nossas machambas.

Diante das reivindicações da comunidade, a empresa está reconhecendo os problemas causados,[10] estando em curso, no caso das machambas, um processo de indemnização pela produção perdida, mediada pela Serviços Distritais de Atividade Económicas de Moatize (SEDAE)[11]. A segunda via de saída da água que ao transbordar inundava as machambas foi fechada pela empresa - para onde vai atualmente essa água quando transborda no período chuvoso é uma incógnita para a comunidade. Segundo relatos da própria comunidade está em curso um processo de monitoria das próximas épocas agrícolas como forma de avaliar o impacto da contaminação na capacidade produtiva das machambas.

A empresa tem feito o abastecimento diário de água para a comunidade através de um “camião cisterna”. A água é atualmente depositada num taque de aproximadamente 200 mil litros. No período em que cheguei a Cancope acabava de ser construído uma “fontenária” para um processo de canalização permanente de água para o consumo, o que garante maior segurança do que abastecimento diário pelo camião cisterna. Segundo relatos da própria comunidade, assim que a canalização estiver pronta um grupo de pessoas serão escolhidas como responsáveis pelo tratamento da água tornando-a mais apropriada para o consumo. O sorriso que era visível nos rostos dos membros da comunidade, pela construção da “fontenária”, evidencia que diante de uma realidade cotidiana tenebrosa provocada por forças exteriores inerentes ao “desenvolvimento” e “progresso” nacional Cancope é atualmente uma comunidade onde nutre a esperança.

“A tragédia não é quando um

homem morre.

A tragédia é o que morre dentro

de um homem quando ele está vivo”.

(Albert Schweitzer)

Figura 04 e 05: Tanque colocado pela empresa para o abastecimento de água. Diariamente um camião cisterna deposita água neste taque para o uso na comunidade Figura 04 e 05: Tanque colocado pela empresa para o abastecimento de água. Diariamente um camião cisterna deposita água neste taque para o uso na comunidade

Figura 04 e 05: Tanque colocado pela empresa para o abastecimento de água. Diariamente um camião cisterna deposita água neste taque para o uso na comunidade

Figura 06 e 07: “Fontenária” construída para um sistema de canalização e fornecimento permanente de água à comunidade. Figura 06 e 07: “Fontenária” construída para um sistema de canalização e fornecimento permanente de água à comunidade.

Figura 06 e 07: “Fontenária” construída para um sistema de canalização e fornecimento permanente de água à comunidade.

Referências

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CAMBAZA, V. “Terra, o desenvolvimento comunitário e os projectos de exploração mineira”. Boletim ideias do IESE, nº 14, 2009.

CHAYANOV, A. V. (1924). “Sobre a teoria dos sistemas econômicos não capitalistas”. In: DA SILVA, José Graziano; STOLCKE, Verena (Org.). A Questão Agrária - Weber, Engels, Lenin, Kautsky, Chayanov, Stalin. São Paulo: Brasiliense, 1981.

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FUNADA-CLASSEN, S. “Fukushima, ProSAVANA e Ruth First: análise de "Mitos por trás do ProSAVANA" de Natália Fingermann”. Boletim Ideias do IESE, nº 53, 2013.

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[1]Metical é moeda oficial de Moçambique.

[2]Desde já agradecer a AAAJC pelo apoio prestado ao longo da pesquisa de doutorado, pelo vasto leque de informações prestadas e acima de tudo por ter-me apresentado a comunidade de Cancobe. O agradecimento especial vai para a comunidade de Cancobe por me ter recebido na sua comunidade e ter trocado diversas impressões e dialogado comigo sobre diversas informações que evidenciam, talvez, uma realidade atual mais “tenebrosa” de vida cotidiana.

[3]As sociedades camponesas possuem uma forma específica de produção e organização socioeconômica que a base da força de trabalho para a produção é a unidade familiar. A produção visa a reprodução socioeconômica dessa unidade familiar. Ou seja, a autonomia de produção e a mínima integração ao mercado constitui uns dos elementos centrais dessa forma específica produção e organização social e econômica (CHAYANOV, 1924; VELHO, 1969).

[4]Importa frisar que essas duas leis foram revogadas e atualizadas pelas leis 20/2014 de 18 de Agosto atual lei de minas e lei 21/2014 de 18 de Agosto, atual lei de petróleo, mas sem nenhuma alteração significativa no que diz respeito à “inferiorização” dos direitos territoriais das comunidades locais, inerentes a ocupação imemorial ou datada, embora as atuais leis garantam maior participação em termos da necessidade de informação e consulta às comunidades locais a serem abrangidas ou afetadas pelos projetos mineiros.

[5]Define-se, no âmbito da lei de terras de Moçambique (lei 19/97 de 01 de Outubro) como título ao documento emitido pelos serviços Públicos de Cadastro, gerais ou urbanos, que serve de comprovativo do direito de uso e aproveitamento da terra.

[6]Ver: art.º 43, nº 01 da lei 14/2002, de 26 de Junho.

[7]Ver: art.º 43, nº 02 da lei 14/2002, de 26 de Junho, esses princípios são reafirmados na atual lei de minas (lei nº 20/2014 de 18 de Agosto), ver art.º 12 da respetiva lei.

[8]Ver: art.º 43, nº 04 da lei 14/2002, de 26 de Junho, esses princípios são reafirmados na atual lei de minas (lei nº 20/2014 de 18 de Agosto), ver: art.º 12 da respetiva lei.

[9]O antropólogo Alfredo Wagner Berno de Almeida define os deslocamentos compulsórios como um “conjunto de realidades factuais em que determinados grupos sociais são obrigados a deixar suas moradias habituais, seus lugares históricos de ocupação imemorial ou datada, mediante constrangimentos [simbólicos ou físicos] sem qualquer opção de se contrapor ou reverter os efeitos de tal decisão, ditada por interesses circunstancialmente mais poderoso” associados a ideia de progresso e modernidade. (ALMEINDA, 1996, p. 467). Ou seja deslocamento compulsório pressupõe um processo impositivo, as empresas multinacionais “acionam mecanismos coercivos, impondo aos demais o comprimento dos seus desígnios, invariavelmente apresentados como obras necessárias ao progresso, modernização e melhoria de vida de todos” (Idem, p. 467). Nesse processo os órgãos governamentais e as agencias financiadoras assumem a “inevitabilidade” dos projetos justificando, legalizando-as assumindo o discurso da sua necessidade e imperiosidade para o bem estar de todos. Os danos causados seria vistos “como passiveis de serem reparados monetariamente [...] mesmo que acarretando problemas morais e redefinições de identidade social, de certo modo, irreparáveis”. (Ibidem, p. 467).

[10]Essas reivindicações foram feitas com acessória e apoio da Associação de Apoio e Assistência Jurídica às Comunidades (AAAJC).

[11]Relatos evidenciam que está surgindo um novo conflito social entre a comunidade por um lado e a empresa e os Serviços Distritais de Atividade Económicas por outro, quanto ao valor indemnização pela produção e pelas machambas contaminadas. “O cálculo da indemnização foi feito pelo governo dizendo que estava pagando as culturas perdidas. O valor pago variou de pessoa para pessoa, outros [receberam] 10 mil, 5mil, 3mil ou 800 meticais, para comunidade a indemnização não foi satisfatória” – disse um dos interlocutores.

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