A Palavra Filmada
Pour la Suite du Monde e as Contribuições de Pierre Perrault à Antropologia

Jean Segata

L’imaginaire est plus réel que le réel.
Michel Brault



Já apontado como um clássico do cinema direto, Pour la Suite du Monde é um dos mais conhecidos filmes do cineasta canadense Pierre Perrault, que apenas muito recentemente vem sendo descoberto no Brasil. Neste breve ensaio, pretendo refletir sobre as contribuições do cinema de Pierre Perrault à Antropologia Visual, tomando como ponto de partida este clássico de sua obra. Talvez minhas reflexões e apontamentos não soprem como ventos novos na Antropologia Visual, uma vez que caminho com certa distância dela em minha trajetória antropológica. De toda forma, espero que esse olhar estrangeiro aponte para o que não se vê quando há muito já se olha e assim, traga alguma novidade por mais óbvia que ela pareça.

Certamente, a primeira e inquestionável contribuição à Antropologia Visual no Brasil, já se deu na iniciativa da Profa. Dra. Carmen Rial, ao oferecer em 2007, na disciplina de Antropologia Visual, do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFSC, uma rica e inédita mostra de filmes de Pierre Perrault, que pioneiramente vem abrir caminhos para explorar mais a fundo a produção cinematográfica canadense, com vistas ao engrandecimento técnico-metodológico de nossa Antropologia Visual.

Dentre os filmes apresentados na referida mostra estão Pour la Suite Du Monde (1962), onde Perrault  reconstitui a pesca dos anos de 1920 em Ile-aux-Coudres – pequena ilha da província de Québec; La Règne du Jour (1967), onde Perrault volta à Ile-aux-Coudres com a proposta de levar um casal idoso da ilha de volta à França das origens; Les Voitures d’Eau (1969), ainda na Ile-aux-Coudres, onde autor mostra o cotidiano e o imaginário dos habitantes da ilha em torno de um situação: a fabricação e o cuidado com os seus “carros d’água”, os barcos; e Le Beau Plasir (1969) e La Bête Lumineuse (1982) onde novamente se reencontra os habitantes d’Ile-aux-Coudres tratando de seu cotidiano, especialmente em torno da caça de baleias e focas. Especialmente nesse último, Perrault preocupa-se em mostrar a pesca (caça às baleias), como um ato ritualizado entre os habitantes da ilha. Além destes filmes, assistimos na abertura da mostra a projeção de Pierre Perrault Parle de L’Ile-aux-Coudres onde o próprio autor e algumas das pessoas que trabalharam com ele em suas produções, especialmente Michel Brault, rememoram a produção de seus trabalhos, os equipamentos utilizados e as situações de filmagem. Mesmo que toda essa produção sugira uma grande continuidade (ainda mais por ser uma trilogia – Ile-aux-Coudres, 1999), restrinjo-me a uma breve análise do primeiro clássico de sua obra, Pour la Suite du Monde, de 1962. Antes, porém, apresento brevemente Perrault e sua contribuição ao cinema canadense.

 

 

1. Pierre Perrault e o “Novo Cinema Canadense”

 

Pierre Perrault nasceu na província de Québec, no Canadá, em 1927 e faleceu em 1999, sendo considerado um dos maiores nomes do cinema canadense da segunda metade do século XX. Quase toda a sua obra diz respeito à região de Québec, especialmente na Ile-aux-Coudres, onde Perrault filmou vários filmes, contando com o protagonismo de alguns dos habitantes da própria ilha, para contar a sua história e seus costumes, resgatar sua identidade e construir a memória de um povo que no passado e no presente cultivavam uma forte ligação com a França interiorana e com os costumes daqueles de lá vieram para colonizar aquela região do Canadá (ONF, 1999).

 
                                                        Imagem 1: “Pierre Perrault”. Arquivos do Office National du Film (Canadá)

Imagem 1: “Pierre Perrault”. Arquivos do Office National du Film (Canadá)

 

 

 



Mesmo com traços únicos, Perrault reconheceu na sua obra a influência de cineastas como Robert Flatherty e Dziga Vertov. Mas seu cinema muito pouco se resumiu à contemplação do cotidiano, mas sim, procurou criar ferramentas hábeis que abrissem as portas para o cotidiano das pessoas, de maneira aproximável das técnicas da Escola de Cinema Direto, tal qual praticado por Jean Rouch, ou por Richard Leacock, salvo a diferença entre Perrault e Rouch; para este último a câmera deveria estar na mão do etnógrafo enquanto que Perrault sempre “filmou” acompanhado de “um câmera”.

O Cinema Direto surge em meados do século passado e se refere, basicamente, a um gênero de documentário cujo intuito principal é o de captar, sem fins didáticos ou de ilustração história, a realidade tal e qual ela é, da maneira como ela acontece; daí de ser conhecido (e confundido) com o Cinema-Verdade. Mesmo admitindo um certo grau de subjetividade enquanto forma de expressão, o Cinema Direto ficou conhecido como o cinema do real, cujas técnicas procuravam garantir a fidelidade do objeto, ou evento reproduzidos pela câmara.  Sua proximidade com a antropologia se deu pelas suas aplicações, m muito como ferramenta científica ao serviço da verdade. Neste caso, filmando o homem e as suas relações, a máquina [a câmera] era um meio privilegiado ao serviço da antropologia, tanto como como instrumento de registo e de pesquisa, tanto como objeto de estudo naquilo que produz na ficção ou no documentário. De maneira resumida, o Cinema Direto pode ser assim resumido:

 

A designação refere-se em geral ao uso da câmara (incluindo, numa fase mais tardia à suas primeiras aplicações, o uso do som direto, sincronizado com a imagem) como um meio de registo estritamente mecânico e automático de uma realidade em curso, de modo a que ela possa ser vista como “a própia natureza, apreendida no fato”. Sendo um meio mecânico de reprodução do visível, altamente aperfeiçoado, um “cine-olho” capaz de filtrar as interferências subjectivas, pode ser mais perfeito que o próprio olho humano e nessa condição ser usado para fazer descobertas. A máquina de filmar é vista como capaz de captar algo categoricamente diferente do olho que ela imita.

 

Ainda conforma a Enciclopédia Livre “Wikipedia”, os precursores do Cinema Direito, ainda nos anos 20 do século passado, são o russo Dziga Vertov e o americano Robert Flaherty. A obra-chave de Flaherty é o conhecido Nanook of the North (1922) e a de Vertov Cine-Olho, além de O Homem e a Câmera (1929), cuja idéia principal e ambos os trabalhos era a de ilustrar a teoria do documentário como um método para captar a vida de improviso (Alves et al, 2005).

Há uma linha geral que pode ser traçada entre o trabalho de Flaherty e o de Vertov: em ambos os trabalhos, salvo a especificidade de cada um, há uma nítida tentativa de se “aproximar do real” sem um conhecimento prévio das pessoas e das situações que se desenrolam – enfim, um cinema sem roteiro que antecipe o ato. A objetividade é buscada ao limite, mesmo tendo-se a consciência de que a presenção da câmera altera o comportamento das pessoas. Especificamente no caso de Vertov, a preocupação central é a de retratar de improviso as circunstâncias e situações cotidianas das pessoas – geralmente, anônimas, múltiplas, em gravações que acontecem em espaços abertos. A ideia central é a de criar um cinema sem encenação, real – daí de se confundir, ou de se tratar como corrente subjacente, Cinema-Verdade (Kino-Pravda, teoria de Dziga Vertov) e Cinema Direto, cujas discussões vão incidir sobre o que é ou não verdade e qual gênero de cinema é ramo de qual. Em resumo, conforme novamente a “Wikipedia”, “a expressão Cinema Direto aplica-se hoje, em sentido muito restrito, para designar um movimento do cinema documentário que, entre 1958 e 1962, se desenvolveu na América do Norte, Canadá e EUA”, ligando, mais fortemente, a França à Québec, no Canadá, onde a designação de Cinema Direto é de fato cunhada e empreendida com mais força. De todo modo, essa ligação forte com a França, especialmente de Québec, não exclui toda a influência que a Escola Britânica de cinema teve na Escola Canadense, especialmente pela figura de Grierson - importante no cinema de documentário, que produz na década de 1930 filmes na Inglaterra e no Canadá; Grierson, não fazia filmes para cinema, mas sim para educar, trabalhando na ONF (Office National du Film), do governo canadense. É nesse contexto que surgem os seus trabalhos de Pierre Perrault, que estudou Direito em Paris e que depois começaria a fazer, sob a influência de Rouch, o “cinema da palavra”, com o intuito central de dar voz aos sujeitos. 

 

 

 
                                                                Imagem 2: “Cena do filme Por la Suite du Monde, de 1962”. Arquivos do Office National du Film (Canadá).

Imagem 2: “Cena do filme Por la Suite du Monde, de 1962”. Arquivos do Office National du Film (Canadá).

 

Em 1959 e 1960, foi ao ar no Canadá, uma série televisiva intitulada Au Pays de Neufve-France, com treze episódios de 30 minutos cada, onde Pierre Perrault, em parceria com René Bonnière, apresentaram lugares, temas, registros e histórias de aspectos tradicionais da colonização francesa do Canadá, a saber, a província de Québec, que projetaria o seu nome no cinema canadense, rendendo-lhe o patrocínio da rica ONF. O primeiro dos episódios, intitulado

La Traversée d’Hiver à l’Ile-aux-Coudres, já o aproximava da ilha onde se passariam mais tarde grande parte de sua produção fílmica – a Ile-aux-Coudres – cujo primeiro longa lá gravado, intitulado Pour la Suite du Monde, em 1962, se tornou um clássico do cinema documental canadense, projetando o nome de Pierre Perrault para além das fronteiras do Canadá, logo associando o seu nome ao que se chamou de “o novo cinema canadense”, no qual Perrault procura, como nas suas influências francesa, russa e britânica, “filmar o que acontece”, buscando a história e não saindo com a história previamente pronta. 

                                                            Imagem 3: Capa do filme “Pour la Suite du Monde”.

Imagem 3: Capa do filme “Pour la Suite du Monde”.

 

2. Pour la Suite du Monde e a Antropologia

Com duração de 105 minutos, Pour la Suite du Monde é um trabalho de 1962, gravado em câmera 16mm na Ile-aux-Coudres, com a parceria de Michel Brault, cujos personagens são os próprios habitantes da ilha. Nele, Pierre Perrault procura resgatar as técnicas empregadas na década de 20 pelos ilhéus, na caça às baleias.

Embora seja um filme ainda pouco conhecido fora do mundo francófono, como a maior parte da obra de Pierre Perrault, ele é significativo especialmente pelo legado da inovação técnica para a época (qualidade nas imagens e sons), pela poética e pela riqueza e sensibilidade à mudança social. Usando equipamentos novos, silenciosos e discretos, como boa captação de som, Perrault consegue, de fato, desenvolver um trabalho no conjunto daquilo que vinha se chamando Cinema Direto, ou como ele mesmo gostava de chamar: “cinema da experiência vivida”. O resultado de toda essa inovação foi uma instantaneidade e espontaneidade raramente vistas antes no cinema.



 
 

 

 
                                                              Imagem 4: “Pierre Perrault e Michel Brault na gravação de Pour la Suite du Monde, de 1962”. Arquivos do Office National du Film (Canadá).

Imagem 4: “Pierre Perrault e Michel Brault na gravação de Pour la Suite du Monde, de 1962”. Arquivos do Office National du Film (Canadá).

 

Quando em 1994, Pierre Perrault foi homenageado com o Prêmio Albert Tessier – considerado um dos maiores prêmios do cinema de Québec, lhe foram proferidas as seguintes palavras:

 

Pierre Perrault permitiu ao Québec a construção de uma memória, memória essa essencial à definição da nossa identidade. A sua escrita fílmica, que tem a fineza e a sensibilidade necessárias para aproximar o cinema da poesia – que ele praticou abundantemente – e da cultura popular, soube devolver as raízes e a voz a um povo desapossado que, no entanto, tinha deixado disseminados, um pouco por todo o lado, os traços da sua poesia. Perrault seguiu esses traços e mostrou-no-los, para que os lembrássemos, criando assim uma ponte entre a civilização tradicional e a presente.

 

Não conheço a poesia que Perrault praticou além do cinema, mas como alguém que fui apresentado ao seu cinema, pude sentir a poesia do seu cinema na sensibilidade do poeta por detrás das câmeras, especialmente na maneira solta como os seus personagens – no caso, habitantes da Ile-aux-Coudres – viviam aquela arte, mais real, muitas vezes, que a própria realidade, a qual Perrault soube retratar com a astúcia de quem percebe que a poética da vida simples de um povo, pode deslizar suave na dureza técnica da produção fílmica. E é justamente aí que reside, em minha opinião, a grandeza da obra de Perrault: ele conseguiu fazer emergir na sua produção a vida daquelas pessoas, nas suas poéticas, nas suas durezas, nas suas sensibilidades, imaginações, sonhos e nas suas realidades. Foi uma pessoa capaz de estabelecer relações humanas em sua obra, sem estar necessariamente preocupado com o enquadramento dos personagens. Na sua película, ficção e realidade se tornam uma coisa fluida e densa.

Mas qual é o mundo de Pour la Suite du Monde? Perrault sensivelmente mostra todo um universo que está perto da natureza, exuberante, sensual. Um Mundo-Ilha, longínquo onde, acostuma-se a viver sozinho e, ao mesmo tempo, mais perto, mais próximo de cada outro, na solidariedade que sempre foi condição de sobrevivência. Um mundo unificado cosmologicamente com Deus (pareciam católicos), onde a lua intervém em favor da vida que têm fé. Enfim, um mundo essencialmente ilustrativo de tempo mítico e histórico.

Entretanto, o mundo mítico estaria ameaçado, cada vez mais, pelo abandono de uma prática estritamente coletiva: a pesca. Os jovens de 20 a 30 anos abandonaram a ilha para a cidade grande e o retorno à velha pratica de captura da baleia (beluca – espécie de golfinho) faz reviver o tempo mítico da solidariedade e do espírito de comunidade. Assim, Pour la Suite du Monde parece ser, sobretudo, um gesto fundamental de valorização cultural: as pessoas com a sua língua, com suas crenças, seus hábitos cotidianos, seu folclore, seus costumes e especialmente sua memória.

Reside aí um dentre os muitos e crescentes interesses que a obra desperta na antropologia, com contribuições não apenas na antropologia visual, mas também para os estudos de memória coletiva, de performance e ritual, uma vez que o trabalho, evocando as maneiras como eram construídos os barcos, as técnicas de caça à baleia, construíam nos seus enredos, uma espécie de mosaico de pequenas experiências pessoais, subjetivas, que eram narradas pelos próprios habitantes de onde suas gravações eram feitas, sendo por eles mesmos relacionadas a outras realidades objetivas comuns, que aos poucos constituíam e reconstituíam toda uma história daquele espaço e de alguns períodos de tempo, como parte das construções presentes da memória daquelas gentes de seus trabalhos. 

Tais memórias, como já classicamente sugeria Halbwachs (2004), não eram compreendidas como isoladas ou fechadas; seus personagens, de uma ou outra forma se reportavam a “pontos de referência que existem fora deles e que são fixados pela sociedade” (HALBWACHS, 2004, p. 58) de tal forma que a obra de Perrault, em boa parte reconstruía lugares, tempos e pessoas.

As técnicas de Perrault, especialmente em Pour la Suite du Monde (1962), como sugerir que se voltasse a capturar baleias ou em que se reformasse os velhos barcos como em Les Voitures d’Eau (1969) ou ainda que se voltasse à velha França-mãe com em La Règne du Jour (1967) faziam emergir nos personagens-habitantes informações para além do que aparentemente era a questão central dos seus roteiros. As situações que ele provoca não são seguidas de determinações, mas abrem caminhos para perceber como acontecem os modos e os processos de constituição daqueles sujeitos e de suas relações, justamente por dar atenção às experiências humanas em contexto, na sua performance ou na maneira como as coisas iam se tecendo. As tomadas de câmera, os momentos de silêncio e de acompanhamento das situações e dos diálogos permitem explorar “a dinâmica da expressão poética do evento e não a fixação do evento como um texto de narrativa ou um manuscrito de uma peça de teatro” (LANGDON, 2001, p. 26). Assim, como sugere Langdon (2001), “entram em cena os interesses sobre a força da experiência, a subjetividade” (id.), vistos “como o fluxo da vida cotidiana” (id.). Neste sentido, mesmo que aparentemente “parado no tempo”, ou revivendo um tempo passado, a vida social retratada por Perrault contesta a visão de cultura como um modelo ideal, fixo e abstrato em adesão a uma visão de cultura “vista como emergente, estando o seu enfoque no ator social como agente consciente, interpretativo e subjetivo” (ibid, p. 24). Isso fazia com que um pequeno amontoada de curtas histórias, algumas experienciadas juntas, outras em torno de algum ponto comum – no barco, em espaços masculinos, nas casas de alguns habitantes, dialogicamente, eram passadas e reconstruídas em espécie de filtro (Bertaux, 1997) entre os habitantes e o roteiro de Perrault, a fim de aos poucos serem abandonados os aspectos mais subjetivos daquelas experiências, construindo experiências que pudessem caracterizar uma espécie de memória mais coletiva da ilha as quais se referiam à identidades mais comuns e tradicionais daquela gente que foram construindo naquele lugar, um lugar único, de um Canadá que não era o Canadá, a partir de uma França que não era mais a França.

Como sugere também Alfred Schütz citado por Daniel Berteaux (1997) “toute expérience de vie comporte une dimension sociale” (Schütz, apud BERTAUX, 1997, p. 45). Assim, a obra de Perrault, mesmo com os propósitos mais pessoais de um cineasta, pode ser vista como um documento público, de histórias de um espaço e um tempo que foi experienciado pelos habitantes da Ile-de Coudres, uma vez que “a lembrança é uma imagem construída pelos materiais que estão, agora, à nossa disposição, no conjunto de representações que povoam nossa consciência atual” (BOSI, 2004, p. 55) e que tão sensivelmente foram capturados no cinema de Perrault. 

                                                        Imagem 5: “Casal Tremblay – habitantes-personagens na Ile-aux-Coudres”. Arquivos do Office National du Fil (Canadá).

Imagem 5: “Casal Tremblay – habitantes-personagens na Ile-aux-Coudres”. Arquivos do Office National du Fil (Canadá).


É neste sentido que Pour la Suite du Monde (1962) traça uma ponte entre o passado, restaurando as ligações entre as pessoas e entre o próprio cotidiano passado e o futuro incerto, exaltando a incerteza. Incerteza esta que é marca do cinema de improviso – na época, dito, “o cinema do novo mundo” .

 

 

 
 

 

 

A palavra é central na sua obra, as pequenas narrativas constroem os cenários e a própria vida dos personagens. Segundo ele, a oralidade transborda de riqueza: “la parole tranborde l’incomun. Les rois ne saivent rien. Les ports son resplis de rumeurs, de sillages, de memoires, de récits. La parole parle, bien avant les écritures” (Perrault [2001, p. 81] apud LAFLEUR, 2005, 270). A oralidade encarna o imaginário daquelas pessoas, o tempo e a história e faz de Pour la Suite du Monde, um cinema da palavra, da oralidade:

 

 

L’un est venu à l'image par la parole, l'autre est venu à la parole par l'image, et c'est la rencontre dans Pour la suite du Monde. Michel était le caméraman exclusif de Pour la suite du Monde, ou presque. Ce qu'il m'a apporté, Michel, c'est pas tant un travail sur l'image, mais la capacité de tourner dans n'importe quelles conditions. Techniquement, il n'y a rien qui l'arrête. Il est toujours en face d'une situation impossible, il trouve toujours un stratagème pour en venir à bout, et ça c'est formidable, parce que moi, je n'étais pas encombré de caméra. Pour la suite du monde, c'est la première expérience véritablement d'un cinéma de la parole (Perrault, apud Scheppler e ESCRIVA, 2006, p. 05)

 

 

Perrault, como já assinalei, foi também no sentido estrito da palavra, um poeta: sensível particularmente ao colorido do dialeto dos ilhéus e de como eles falaram sobre os caminhos da velha pescaria, do “ser marinheiro” ou agricultor. Sua equipe de apoiadores também foi, em certa medida, composta por poetas, também capazes de captar elementos da cultura – som, cores, planos – que coincidiam com as narrativas dos habitantes-personagens para formar uma imagem da mais sugestiva e profunda realidade, especialmente aquela do universo do trabalho artesanal. Aquele início de década de 1960, como também o que se seguiu nos demais filmes passados na década seguinte, mostram como aquela região do Canadá foi marcada por um processo crescente de industrialização, modernização e globalização dos serviços, que foi aos poucos suprimindo o modo de vida colonial da região de Québec. Perrault deixa como legado, especialmente ao povo canadense, um registro de vestígios da velha Québec e, do mesmo modo, um registro das tensões criadas nos processos de transformação da sociedade e da própria identidade québécois, que por muito tempo (e ainda hoje) tenta preservar a sua autenticidade francofônica e com ela sua distinção em relação ao resto do país, ainda nutrindo esperanças de uma autonomia nacional.

Perrault, como o cinema e a antropologia visual, para mim ainda são novidades, mas acredito poder escrever dele, especialmente por seu trabalho na região de Québec, o mesmo já escrito em relação a Jean Rouch e os seus trabalhos na África:

 

A voracidade do nosso olhar perante o desfilar do mundo exige de nós registros fiéis para bem captar as coisas. Jean Rouch, engenheiro de pontes e de estradas que nos conduzem a um outro tempo, vira a objectiva para África, o berço do homem. Atraem-lhe o olhar práticas ancestrais em extinção, num estado ainda puro. Ao contrário de Vertov, que aponta a câmara para o futuro, Jean Rouch aponta a sua para o passado, visando o mesmo personagem. Figura que Vertov mostra com nuances futuristas, Jean Rouch regista em retrato, no que ele tem de mais antigo. O “cine-olho” de Vertov prefere retratar a construção do mundo num momento crucial da história, a “câmara participante” de Flaherty e o “cinema direto” de Rouch retratam a desconstrução de mundos em crise ou em vias se perderem. Rouch, ele só, associa esse modo perscrutador da câmara ao rigor e objetividade que a etnologia, que é ciência, dela exige (COSTA, 2000, p. 07).

 

É justamente por olhar a Ile-aux-Coudres do futuro para o passado, através da caça à baleia, que Perrault nos conduz, como por uma ponte, a outros tempos para mostrar como aqueles do presente estavam e desconstrução, ou em vias de se perder. E, se como nos ensina Jean Rouch, tudo são ficções etnográficas, já que não há encontro sem ficção e são as ficções que se tornam realidade, Perrault soube transformar a ficção em realidade, porque a ficção, como o sonho e a poética, podem não ser possíveis, mas nem por isso são menos reais. Como muito bem resume Deleuze (2005), ao comentar o trabalho de Perrault:

 

O que o cinema tem de apreender não é a identidade de uma personagem, real ou fictícia, através dos aspectos objetivos e subjetivos. É o devir da personagem real quando ela própria se põe a “ficcionar”, quando entra “em flagrante delito de fazer lenda” e contribui deste modo para a invenção do seu povo. A personagem não é separável de um antes e de um depois, mas reúne-os na passagem de um estado para o outro. Toma-se ela própria uma outra, quando se põe a fabular sem nunca ser fictícia. E o cineasta, por seu lado, torna-se outro quando “intercede” nas personagens reais que substituem em bloco as suas próprias ficções pelas suas próprias fabulações. Ambos comunicam na invenção de um povo (DELEUZE, 2005, p. 194).

 

Fazer renascer num povo uma vida de passado no presente, foi uma realidade que só a sensível ficção de Perrault tornou possível, especialmente através de palavras filmadas

 

3. Referências

 

ALVES, et al. Estudo Sobre o Cinema Direto e o Cinema Verdade: conceitos, contradições e principais influências. UFRJ: Laguinho, agosto de 2005.

 

BERTAUX, Daniel. Les Récits de Vie: perspective ethnosociologique. Paris: Nathan, 1997.

 

BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: lembranças dos velhos. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2004.

 

CINEMATECA PORTUGUESA. Pierre Perrault: o cineasta pescador. Disponível em: http://geo.international.gc.ca/canada-europa/portugal/right_nav/p_perrault-en.asp. Acesso em maio de 2007.

 

COSTA, Ricardo. A Outra Face do Espelho: Jean Rouch e o “outro”. Portugal, 2000. Disponível em: www.bocc.ubi.pt. Acesso em maio de 2007.

 

DELEUZE, Gilles. A Imagem-Tempo: Cinema 2. São Paulo: Brasiliense, 2005.

 

HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo: Centauro, 2004.

 

LAFLEUR, Guillaume. La Parolle Filmée ou la Redécouverte des Origines chez Pierre Perrault. Lieu et Mémoire au Canadá. Montréal, 2005, pp. 269-276.

 

LANGON, Esther Jean. Performance e Preocupações Pós-Modernas em Antropologia. Antropologia em Primeira Mão. Florianópolis: PPGAS/UFSC, 2001.

 

ONF. “Biographie de Pierre Perrault”. In: ______. Dossier Perrault: l’œuvre de Pierre Perrault. Vol 1. La Colletion Memoire. Canadá, 1999.

 



SCHEPPLER, Gwenn; ESCRIVA, Escriva. “Je Suis le Premier Spectateur”: entretien tardif avec Pierre Perrault. Nouvelles “vues” sur le cinéma québécois. N.6, Outubro de 2006, pp 01-18.

 

TORONTO INTERNATIONAL FILM FESTIVAL. “The Films of Pierre Perrault”. Passaport To Canadian Cinema at the Toronto International Film Festival. Toronto, s/d, p. 101.

 

WIKIPEDIA. “Cinema Direto”. Disponível em: www.pt.wikipedia.org/wiki/Cinema_directo.

 

 

 

Referências Fílmicas

 

PERRAULT, Pierre. Pour la Suite Du Monde. Canadá: ONF, 1962.