O Verbo-visual reconstruindo o budismo HBS

Alex Nakaoka


Preâmbulos: A busca pelo sagrado

 

Foi lendo um livro de Fernando Cury de Tacca, intitulado “Imagens do Sagrado – Entre Paris Match e o Cruzeiro” (2009), que tive a inspiração almejada. A obra mostra imagens da religião Candomblé na cidade de Salvador, que foram produzidas pelo antropólogo/fotógrafo Pierre “Fatumbi” Verger e publicadas pelas revistas “O Cruzeiro” (brasileira) e “Paris Match” (francesa), em 1951. O livro, que faz referências a veículos jornalísticos (revistas impressas), aguçou a minha atenção por tratar da religiosidade (tema que muito me provoca), de exercer uma fé “diferente” em um país predominantemente cristão.

Desta forma, tomei como ponto de partida a prática do Candomblé. Mas, como não possuo proximidade com tal religião, não por preconceito, mas por falta de conhecimento e ligação, encontrei (de forma quase automática) um assunto que muito me interessava.

Assim, surgiu o desejo de estudar o Budismo, religião nascida na Índia, mas que se disseminou pela China e Japão, este último o país de origem dos meus avós maternos.

De fato, eu sempre convivi com altares, orações, dogmas e preces budistas. Porém, nunca me aprofundei no assunto, tampouco fiz qualquer questionamento a respeito do tema. Talvez isso tenha se dado pelo meu crescimento em contínuo contato com a fé cristã, tendo passado por todos os sacramentos que um jovem católico deve percorrer (batismo, primeira comunhão, crisma).

Mas tal interesse, que outrora pensava não existir, apenas jazia adormecido. Quando surgiu o “insight”, detonado pela leitura do livro de Fernando de Tacca, percebi que seria a oportunidade de, mais do que realizar um Mestrado (que para mim já significava muito), resgatar um passado familiar e pessoal, antes totalmente ignorado.

Dessa forma, elaborei meu projeto de pesquisa, que tinha como objeto específico de estudo uma corrente budista chinesa. A corrente por mim escolhida, inicialmente, deveu-se mais à forma do que ao conteúdo. Interessei-me pelo templo Zu Lai, localizado em Cotia, perto da cidade de São Paulo. O que me chamou a atenção neste santuário foi a beleza da arquitetura e das imagens (dos Buda, de monges, etc) que lá estão.

Após duas visitas iniciais ao templo Zu Lai, percebi que seria inviável a realização de uma pesquisa de campo aprofundada. Isto porque as sacerdotisas responsáveis não se mostraram dispostas a realizar tal abertura, que possibilitasse um trabalho consideravelmente relevante.

Por isso, embora meu projeto submetido ao departamento de Multimeios da Unicamp tratasse do Budismo do templo Zu Lai, passei a considerar a possibilidade de abordar outra tradição. Na verdade, antes do início do projeto, já havia conversado com uma tia materna, que, juntamente com seu marido, há muitos anos frequentava a Catedral Nikkyoji (localizada na cidade de São Paulo e principal templo desta corrente), pertencente à corrente japonesa Honmon Butsuryu-shu (HBS).

 

O fato de eu ter procurado por eles apenas após ouvir uma resposta negativa das sacerdotisas do templo Zu Lai, não se deu por preferência em estudar o Budismo chinês. Na verdade, tive receio de utilizar parentes para me aproximar desta comunidade. Receio, em primeiro lugar, da academia, que talvez não visse com bons olhos tal “facilidade”. E receio, também, em sofrer possíveis influências dos meus tios durante a pesquisa (estes dois temores não se concretizaram, em nenhum momento).

Desta forma, aceitei e abracei a HBS do Brasil (genericamente) e a Catedral Nikkyoji (especificamente) como objeto central de estudo. Para tanto, fiz uso dos registros fotográficos (realizados durante as pesquisas de campo) e da oralidade (através de entrevistas com sacerdotes e fiéis) como caminho principal para decifrar os meandros desta corrente, que foi a primeira a chegar ao Brasil, no decorrer de 1908.

Porém, anteriormente à realização desta imersão via pesquisa de campo (realizada entre os dias 26 e 29 de maio de 2011), que almeja ser antropológica, houve a eminente necessidade de aprofundar meus conhecimentos sobre o Budismo, religião milenar e rica em pormenores, os quais pouco conhecia. Através de uma revisão da literatura, percebi que o Budismo não é homogêneo e sim, ao contrário, uma religião composta por diversas ramificações ou correntes.




Por causa destas divisões, nas quais cada subgrupo guarda características semelhantes e distintas em relação às demais, vi a necessidade de realizar uma pesquisa bibliográfica, antes de submergir na pesquisa de campo participativa. A partir de uma compilação de textos de outros autores, consegui me ambientar ao assunto a ser pesquisado posteriormente.

Basicamente, é importante ressaltar que o Budismo surgiu na Índia (mais especificamente na região que atualmente corresponde ao Nepal) há 563. a.C.,  através do príncipe Siddharta Gautama. Posteriormente, este nobre homem seria conhecido como Buda Histórico ou Buda Shakyamuni, que fundou a religião estabelecendo 84.000 sutras, ensinamentos orais transmitidos por seus discípulos ao longo de gerações. Aqui, é possível notar a importância da oralidade na doutrina budista, componente essencial na transmissão da história desta religião milenar.

Após a morte de Gautama, houve um grande cisma no Budismo, originando duas grandes vertentes da doutrina.

A primeira é a Theravada (ou Budismo dos “Patriarcas Anciãos”), que defende que o Buda Histórico deixou preceitos orais claros aos seus discípulos, afirmando a necessidade do esforço individual para construir, cada um, sua própria salvação.

Sendo assim, esta vertente “propõe como ideal o Arhat, o santo, o homem cujos atos, palavras e pensamentos não projetam um karma; o homem que não voltará a encarnar e que, ao morrer, entrará no Nirvana” (BORGES, 1977, p. 72). Para estes monges, a tarefa religiosa é de tempo integral e é necessária dedicação exclusiva para alcançar a Iluminação, assim como o Buda o fizera.

A segunda vertente, denominada Mahayana (ou “Grande Veículo”) tem sua origem datada por volta do século I d.C e atualmente é predominante em países como Coréia, Japão, China e, também, na região do Tibete, expandindo-se de forma mais intensa pelo mundo ocidental, adentrando em países como Estados Unidos, França e Brasil.

Para Jorge Luiz Borges e Alicia Jurado (BORGES, 1977, p. 67) “toda a religião deve adaptar-se às necessidades de seus fiéis, e o Budismo, para sobreviver, se resignou, ao longo do tempo, a profundas e complexas modificações”.

Tais modificações correspondem às transformações ocorridas graças a um grupo de monges progressistas, que rompendo com o tradicionalismo da corrente Theravada, adicionou novas doutrinas, deixadas por importantes mestres (como Nichiren, Dõgen, entre outros), doutrinas estas não aceitas pela corrente mais antiga.

A doutrina do “Grande Veículo” oferece a esperança para cada um de seus membros, mesmo que remotamente, de tornar-se um Buda ao término de inúmeras transmigrações, salvando inúmeros seres humanos dos quase intermináveis ciclos de nascimentos e mortes. Para os mahayanistas, cada ser humano pode alcançar o Nirvana, sem ter a obrigação de transformar seus atos imediatamente:

 

... todos chegaremos ao Nirvana ao adquirir consciência desse estado e cada folha de pasto alcançará a condição de Buda. Enquanto isto, percorreremos as seis possibilidades de ser, com a segurança de ascender à dignidade dos Devas e morar em paraísos” (BORGES, 1977, p. 68).


Para os adeptos desta vertente, o ideal do Buda foi substituído pelo do Bodhisatva, um homem que pretende se tornar um Buda ao fim de incontáveis vidas, mostrando o caminho da Iluminação para o maior número possível de seres senscientes. Como justificativa para este conceito, os adeptos da grande vertente levam em consideração a dedicação do Buda Shakyamuni que, mesmo após alcançar a Iluminação por esforço próprio, regressou e passou cerca de 45 anos na tentativa de mostrar, à todo ser sensciente, o caminho do Nirvana, através dos 84.000 ensinamentos orais (sutras).

Esta breve revisão histórica aqui apresentada justifica a opção por estudar a religião Honmon Butsuryu-shu, que consiste em uma corrente da tradição Mahayana, mais interessada em expandir seus preceitos religiosos e aberta à realização da pesquisa de campo participativa, momento de imersão e registro das atividades religiosas através de imagens fotográficas e da oralidade (gravação de diversas cerimônias, entrevistas, etc.).

 

Por um percurso verbo-visual


"A questão do arquivo não é [...] uma questão do passado [...] É uma questão de futuro, a questão do futuro mesmo, a questão de uma resposta, de uma promessa e de uma responsabilidade para amanhã. O arquivo, se quisermos saber o que isto queria dizer, isso somente será de nosso conhecimento no tempo que há de vir" (DIDI-HUBERMAN, 2009, p. 60).


Após terminar tal imersão dentro da comunidade HBS, procurei elaborar uma forma de representação verbo-visual dos rituais presenciados. Desta forma, realizei uma seleção de imagens (dentro de um universo de 4.000 fotografias registradas) e as apresentei no quinto e último capítulo da dissertação.

Neste desfecho, elaborei 58 pranchas verbo-visuais, tendo como alicerce o modelo metodológico cunhado pelo casal de antropólogos Margaret Mead e Gregory Bateson, no célebre livro Balinese character: a photographic analysis (1942).

Este importante tratado antropológico narra a história do empreendimento realizado pelo casal, entre junho de 1936 e fevereiro de 1938, em Bali. Lá, produziram um vasto conteúdo etnográfico, com “mais de 25 mil clichês fotográficos Leica realizados e revelados por Gregory Bateson no local e, conjuntamente, a montanha de cadernos de campo nos quais Margaret Mead consignava o contexto de produção e de realização dessas tomadas” (ALVES; SAMAIN, 2004, p. 52).

Nesta obra, “todas as fotografias foram apresentadas em forma de sequências com no mínimo seis fotografias em cada prancha” (ALVES; SAMAIN, 2004, p. 109), nas quais Bateson e Mead expõem os resultados de uma longa estadia entre os balineses. Para isso, dispõem (sempre) uma página com explicações verbais sobre uma sequência de fotografias, colocadas em série na página seguinte. Cada conjunto de duas páginas (a primeira com as explicações e a segunda com as fotografias) compõe uma prancha verbo-visual. Optei por tal metodologia, tão bem utilizada por André Alves (no livro Argonautas do Mangue) em seu trabalho com uma comunidade de caranguejeiros da cidade de Vitória (estado do Espírito Santo) por me deparar, ao longo da minha pesquisa, com um mesmo problema:


“Por haver reunido uma grande quantidade de dados (entrevistas, textos e imagens), deparei-me com uma nova pergunta: como organizá-los no corpo da pesquisa? Nesse momento, o modelo metodológico proposto por Margaret Mead e Gregory Bateson em Balinese character: a photographic analysis tornou-se decisivo para a viabilização do empreendimento. Ele oferecia um duplo percurso heurístico. Um primeiro, mais amplo, em que se busca, através de descrições, situar o leitor no contexto geral dos assuntos enfocados. O segundo, mais específico, em que se procura, através de uma interação entre texto e imagem, uma descrição detalhada dos fenômenos pesquisados. ” (ALVES; SAMAIN, 2004, p. 79).


Partindo deste pressuposto, a obra verbo-visual produzida pelo casal Gregory Bateson e Margaret Mead foi utilizada como metodologia nesta jornada – sendo aplicada em uma temática completamente diferente da original e, portanto, com desdobramentos distintos – por ser considerada um marco fundador do que seria uma nova disciplina. Segundo Samain:


A obra representa um extraordinário empreendimento antropológico e editorial, que começou a se tornar ‘mítico’ no final da década de 1960, quando John Collier Jr. (1913-1992), integrante, desde 1941, da Farm Security Administration (FSA), publicou, nos Estados Unidos, o seu Visual anthropology: photography as a research method (1967). Uma ‘nova’ disciplina, a chamada ‘antropologia visual’, havia nascido, e seus novos proponentes precisavam de pais fundadores. A escolha recaiu sobre Balinese character (ALVES; SAMAIN, 2004, p. 49).


Portanto, utilizando a metodologia de Balinese character: a photographic analysis, é possível perceber que a relação da Antropologia com a imagem pode ir muito além da função ilustrativa que ela (imagem) exerce nos livros, sempre acompanhada de uma legenda descritiva, que nunca tem o poder de esgotar todo o seu conteúdo.

Samain diz, neste sentido, que “sem chegar a ser um sujeito, a imagem é muito mais que um objeto: ela é o lugar de um processo vivo, ela participa de um sistema de pensamento. A imagem é pensante” (SAMAIN, 2012, p. 06). 

Para o autor, as imagens nunca nos mostram um pensamento único e definitivo, mas as lembranças, memórias e esquecimentos nele contidos. “Toda imagem se choca, arrebentando uma espiral de novas e outras operações sensoriais, cognitivas e afetivas” (SAMAIN, 2012, p. 06).

Com estes conceitos em voga, o intuito da pesquisa era oferecer as condições de poder, visualmente, pensar o registro verbo-visual não somente como um álbum datado (o que ele já é), e sim como um arquivo muito vivo, que permite originar olhares novos, tanto transversais (já que são imagens do passado, mas que também reverberam no presente e no futuro) como transterritoriais (já que representam uma tradição religiosa no Brasil, mas que co-existe na cultura japonesa).

Esta última parte do trabalho, que originou o presente artigo, buscou mostrar as potencialidades da imagem fotográfica (capaz de representar tanto um álbum quanto um arquivo vivo de lembranças) como fonte de documentação e, mais do que isso, de memória, tanto para mim quanto para aqueles que fizeram parte da pesquisa (sacerdotes e fiéis que pertencem à comunidade em questão).

Assim, para a elaboração e composição das pranchas verbo-visuais, retornei uma vez mais à Catedral Nikkyoji, tendo permanecido no local entre os dias 09 e 10 de agosto de 2012.

Neste período, apresentei aos sacerdotes e a alguns fiéis um resumo do meu trabalho, repleto de fotografias. Também deixei com os clérigos duas cópias contendo as 58 pranchas por mim elaboradas, para que tivessem o tempo necessário para apreciar tal conteúdo, elaborando suas observações e correções acerca do conjunto de imagens.

O último passo foi retornar à Catedral Nikkyoji, no dia 18 de novembro de 2012, data combinada juntamente ao Arcebispo Correia (principal autoridade da HBS no Brasil) para a devolução do material verbo-visual. Neste momento crucial, realizei entrevistas orais, nas quais sacerdotes e fiéis discorreram sobre os conjuntos de imagens.

O que difere as pranchas deste trabalho em relação às de Mead e Bateson é que estas foram elaboradas com o auxílio e cooperação da comunidade HBS, tendo passado por uma minuciosa revisão comentada oralmente, realizada por sacerdotes e fiéis.

Neste sentido, é possível pensar em uma confluência entre a Antropologia Visual e o método dialógico de uma antropologia (dita) pós-moderna, que tem como principais expoentes James Clifford, George Marcus, Stephen Tyler, Paul Rabinow, entre outros, a partir do final dos anos 70. Segundo Vagner Gonçalves da Silva:


O pós-modernismo na Antropologia, segundo bibliografia recentemente produzida nos Estados Unidos, tem como característica principal formular uma crítica ao texto etnográfico clássico, considerando questões como suas condições de produção, o papel do autor, os recursos retóricos utilizados e a ausência, no texto, de uma perspectiva crítica mediando a cultura descrita (do informante) em função da cultura para qual se escreve (do autor) (1991, p. 47).


Silva parte da análise de alguns textos etnográficos da bibliografia religiosa afro-brasileira com os quais trabalhou, sobre transformações simbólicas e rituais no culto aos orixás, da religião Candomblé, na cidade de São Paulo. O autor menciona as obras produzidas por Roger Bastide, Juana Elbein e Pierre Verger como exemplos de trabalhos onde ocorre uma expressão ambígua do autor, “que aparece como pesquisador para legitimar a sistematização proposta no texto, e como "iniciado" para garantir uma perspectiva “desde dentro” (1991, p. 47).

Neste sentido, um segundo ponto importante levantado por Silva (1991) é o fato de que as produções etnográficas pós-modernas se transformam em fontes legítimas de consulta para os leitores religiosos, “que passam a tratar as informações etnográficas como verdadeiros estatutos de regras rituais (1991, p. 47).

 

Assim, observando os observadores e seus escritos (antropólogos em sua prática de pesquisa), as preocupações destes etnógrafos (ou "meta-etnógrafos") recaíram sobre questões relativas ao próprio processo de produção do conhecimento antropológico e sobre a autoria dos textos resultantes desse processo (SILVA, 1991, p. 49).


De fato, ao expor minhas 58 pranchas verbo-visuais para a comunidade pesquisada, obtive a confirmação destes dois pontos elementares elencados por Silva (1991).

Primeiramente, embora não tenha passado por um processo de iniciação, ou, no caso, de conversão (embora não me faltassem convites, vindos de fiéis e sacerdotes), é nítido a existência de um envolvimento maior com a comunidade, do que uma simples e fria relação observador/observado. Tal envolvimento foi elucidado, por exemplo, durante meu exame de qualificação, no qual a professora Dra. Olga Rodrigues de Moraes von Simsom, uma das componentes da banca, me disse que estava “embevecido” com a pesquisa de campo e que era necessário, por hora, um mínimo de espírito crítico.

Tal envolvimento, que une o antes irreconciliável binômio “eu”/”outro”, foi o responsável para que, com o passar do tempo, fosse superada a imagem que a comunidade tinha a respeito do pesquisador/fotógrafo outsider (“eu”), agora legitimado como o interlocutor e fotógrafo oficial.

Neste sentido, oferecer à comunidade as 58 pranchas com um substrato relevante de fotografias dos rituais da HBS, aliados aos relatos textuais, foi de extrema importância para que uma relação dialógica, compartilhada e mais equilibrada se estabelecesse. De fato, permiti que a comunidade tivesse acesso às minhas impressões e, indo além, recebi um feedback positivo, que veio através da reorganização das fotografias e pranchas visuais e na correção/acréscimo dos comentários textuais.

Assim, consegui estabelecer o conhecimento etnográfico adquirido como resultado de situações de diálogo entre subjetividades concretas, que interagem em condições sobredeterminadas de contato e de negociação de sentido. Ou seja, o trabalho produzido não privilegiou somente a voz (e o olhar) do antropólogo, originando um texto o mais polifônico possível. Neste sentido, Clifford nos diz:




"Um modelo discursivo da prática etnográfica dá preeminência à intersubjetividade de toda fala, e ao seu contexto performativo imediato...; as palavras da escrita etnográfica... não podem ser construídas monologicamente, como uma afirmação de autoridades sobre, ou interpretação de uma realidade abstrata, textualizada. A linguagem da etnografia é impregnada de outras subjetividades e de tonalidades contextualmente específicas. Porque toda linguagem na visão de Bakhtin, é uma concreta concepção heteróglota do mundo". (CLIFFORD, 1983, p. 133, trad. Tereza Caldeira).


Com um trabalho que buscou mesclar vozes plurais (a do antropólogo e dos membros da comunidade estudada) confirmo o segundo ponto levantado por Silva (1991), já que as pranchas verbo-visuais produzidas, assim como o volume final da dissertação deixado com a comunidade, agora servem como fonte legítima de conhecimento ritual para a comunidade em questão.

 

Um tema: Antropologia, fotografia e simbolismo ritual

 

A escolha de uma corrente específica do Budismo para desenvolver esta pesquisa – a Honmon Butsuryu-shu – se faz necessária tendo em vista a grande quantidade de monastérios e correntes budistas existentes no Brasil e no mundo. Como seria inviável realizar uma pesquisa de campo satisfatória em todos os monastérios existentes no país, a Catedral Nikkyoji foi escolhida por causa da sua localização mais acessível (próximo de Campinas) e por pertencer à tradição Mahayana.

Esta concepção distinta entre as duas tradições faz com que o Budismo Mahayana em geral, e o da HBS, especificamente, mostre-se mais aberto à visitação do público, permitindo que ele participe dos seus rituais (no caso, todos os rituais envolvem a emanação da oração sagrada, Namumyouhourenguekyou), além de oferecer, no Brasil, palestras e cultos na língua portuguesa, o que facilita o acesso à esta tradição budista, tornando possível e viável minha pesquisa de campo.

Neste sentido, Ricardo Mário Gonçalves nos mostra, em seu livro A ética Budista e o espírito econômico do Japão (2007), a principal obra de Suzuki Shôsan, um grande mestre do Zen-budismo (que também consiste em uma corrente japonesa do Budismo Mahayana). Através da análise do texto Banmin Tokuyô, Gonçalves sustenta o argumento de que a vida laica (ou leiga) passou a ser cada vez mais valorizada no Budismo japonês a partir do século XV, como uma opção tão viável quanto a vida monástica para alcançar a realização espiritual (2007, p. 49).

É preciso ressaltar, ainda, uma importante distinção budista da HBS. Nesta tradição, que deriva de um grande mestre do Budismo japonês, chamado Nichiren (1222-1282), há uma intenção evidente em mostrar a existência do que eles chamam de Budismo Primordial. Para os devotos desta corrente, existe um Buda Primordial, primeiro, que é a origem de todos os Budas e princípio também de toda e qualquer forma de existência. Isso significa que os Budas existentes em vários mundos; inclusive o Buda da Terra (chamado de Buda Histórico ou Buda Shakyamuni), venerado por todos os demais segmentos da religião; seriam na verdade emanações do Buda Primordial.

Desta forma, o Buda Histórico seria “simplesmente” uma manifestação do Buda Primordial, que veio à Terra para disseminar os ensinamentos deste último. Ao terminar sua obra, seu legado, o Buda Shakyamuni retornou imediatamente ao interior do corpo do Buda Primordial.

O Budismo HBS coloca, portanto, o Buda Primordial como uma espécie de divindade máxima, criadora, diferentemente das demais doutrinas budistas, que são ateias em relação a uma entidade suprema.  Tal Buda Primordial teria transmitido (através do Buda Histórico) o chamado Sutra Lótus Primordial ou Sutra do Lótus da Lei Excelente, que é totalmente sintetizado pela escritura/imagem sagrada Namumyouhourenguekyou, presente em todos os altares da HBS e emanada em todos os rituais da HBS. A respeito desta particularidade, Gonçalves nos diz que “Nichiren fulminava com a mais radical condenação todos os que não seguissem sua doutrina, baseada no Saddharma-Pundarika-Sutra (Sutra do Lótus da Lei Excelente) e era, por sua vez, condenado por todas as escolas” (2007, p. 59).

Neste sentido, o ato fotográfico serviu, aqui, como caminho para decifrar, documentar, rememorar e reconstruir o contexto ritual que envolve esta dupla imagem sagrada (escrita apreendida pela nossa visão e imagem que nos remete a uma entidade superior, abstrata, talvez até imaginativa).

De acordo com Roberto Damatta, no prefácio à obra Os ritos de passagem, de Arnold Van Gennep: 


O rito, assim, também enquadra – na sua coerência cênica grandiosa ou medíocre – aquilo que está aquém e além da repetição das coisas reais e concretas do mundo rotineiro. Pois o rito igualmente sugere e insinua a esperança de todos os homens na sua inesgotável vontade de passar e ficar, de esconder e mostrar, de controlar e libertar, nesta constante transformação do mundo e de si mesmo que está inscrita no verbo viver em sociedade (1978, p. 11).


Debruçar sobre o ritual de emanação permite também, como sugere Victor Turner, entender como:


Os rituais revelam os valores no seu nível mais profundo e os homens expressam no ritual aquilo que os toca mais intensamente e, sendo a forma de expressão convencional e obrigatória, os valores do grupo é que são revelados. Vejo no estudo dos ritos a chave para compreender-se a constituição essencial das sociedades humanas (1974, p. 19).


De fato, ao acompanhar durante dois anos a comunidade HBS, notei que as diversas cerimônias realizadas, sejam elas cultos vespertinos e noturnos, cultos póstumos, orações fervorosas, visitas assistenciais e até mesmo momentos, a priori, profanos, (descontração dos sacerdotes e fiéis, refeições, brincadeiras, conversas informais, entre outros), tiveram como preceito básico a recitação do mantra sagrado Namumyouhourenguekyou.

            Neste sentido, Turner serve como referencial teórico para o presente trabalho, ao afirmar que “(...) uma coisa é observar as pessoas executando gestos estilizados e cantando canções enigmáticas que fazem parte da prática dos rituais, e outra é tentar alcançar a adequada compreensão do que os movimentos e as palavras significam para elas” (1974, p. 20).

            Para Roberto Damatta, em prefácio à obra “Floresta de Símbolos” de Victor Turner (1967), o antropólogo britânico “toma o ritual como drama, e o drama (as crises políticas, sociais e de vida) como ritual, inventando um modo original e promissor de penetrar na vida de uma sociedade” (1967, p. 25-26). Além disso, Turner seria um estudioso obcecado pelas formas rituais e o “criador de uma antropologia do drama e do ritual,  levando os postulados de Arnold Van Gennep aos seus limites” (1967, p. 26).


(...) o que propunha era um programa de análise no qual a vida ritual deveria ser vista como um mecanismo privilegiado de sublimação de valores negativos e/ou reprimidos que eles revelavam e traziam à tona por meio de gestos bizarros e objetos especiais – um conjunto de ‘símbolos’ interligados, verdadeiros caminhos ou sendas – que, vistos em conjunto, formavam um tecido móvel, vivo e dinâmico: uma floresta cuja exploração transformava (1967, p. 26).

De fato, Turner traz à tona os conceitos de ritual e símbolo, essenciais para a análise dos diversos rituais da Honmon Butsuryu-shu , tendo como principal alicerce a recitação do mantra sagrado.


Por ‘ritual’, entendo o comportamento formal prescrito para ocasiões não devotadas à rotina tecnológica, tendo como referência a crença em seres ou poderes místicos. O símbolo é a menor unidade do ritual que ainda mantém as propriedades específicas do comportamento ritual; é a unidade última de estrutura específica em um contexto ritual. (...) um símbolo é uma coisa encarada pelo consenso geral como tipificando ou representando ou lembrando algo através da posse de qualidades análogas ou por meio de associações em fatos ou pensamentos. Os símbolos que observei em campo eram, empiricamente, objetos, atividades, relações, eventos, gestos e unidades espaciais em uma situação ritual (1967, p. 49).


Aliás, como afirma Peirano, “como sistemas culturalmente construídos de comunicação simbólica, os ritos deixam de ser apenas a ação que corresponde a um sistemas de ideias, resultando que eles se tornam bons para pensar e bons para agir – além de serem socialmente eficazes” (2000, p. 12). A autora acrescenta que os rituais partilham alguns traços formais e padronizados, mas variáveis e fundados em constructos ideológicos particulares.

            Tendo estes conceitos em mente, é possível pensar na fotografia também como um um ritual moderno, que envolve diversos personagens (como o fotógrafo, a comunidade fotografada, que realiza uma performance diante da câmera) e os espectadores das imagens. Neste caso, o intuito é compreender como se dá, em primeiro plano, a aceitação de um fotógrafo/antropólogo outsider em uma comunidade, até o ponto deste observador ser incorporado e aceito como fotógrafo oficial dos principais rituais da religião no Brasil, mesmo sem ter sido convertido. Podemos, ainda, considerar o ato (ritualizado) de olhar para um álbum de fotografias e rememorar os acontecimentos impressos, como se as fotografias tivessem o poder mágico de revitalizar o tempo, o espaço e os personagens envolvidos na trama fotográfica, servindo como alicerce imagético (e físico) para reconhecer e analisar os diversos elementos simbólicos que compõem o contexto e o campo ritual em questão.

A seguir, disponibilizo três pranchas verbo-visuais, que servirão como um breve exemplo da utilização das potencialidades de imagens e registros orais (transcritos) para a reconstrução do cenário religioso e ritual/simbólico por mim presenciado. Os relatos verbais das três pranchas foram cunhados juntamente com o Arcebispo Kyohaku Correia, sacerdote superior da HBS e principal autoridade da religião no Brasil.

 

TEMÁTICA A: NÚCLEO DA FLOR DE LÓTUS

Prancha 1:

 

ORAÇÃO SAGRADA NAMUMYOUHOURENGUEKYOU

 

O núcleo da nossa religião, a Honmon Butsuryu-shu, é a emanação do mantra sagrado que chamamos de Primordial. Este mantra é considerado a doutrina e a oração sagrada, sendo representada por uma imagem que para nós também é sagrada. Esta imagem é escrita em Kandi, que corresponde a uma forma de escrita japonesa, a mais difícil delas. Este mantra, que é recitado em todas as nossas cerimônias, em todos os rituais, é o Namumyouhourenguekyou. Esta imagem sagrada também está presente em todos os nossos altares da HBS.

Nesta sequência de fotografias, a gente vê alguns altares sagrados de templos da HBS no Brasil. Sem a presença destes altares não pode ocorrer qualquer tipo de cerimônia religiosa. Não tem culto sem eles. Em cada um deles está presente a Imagem Sagrada (Namumyouhourenguekyou) ao fundo, tendo à frente a imagem do mestre Nichiren Daibossatsu, que foi o precursor da HBS e de outras correntes budistas, o primeiro que pronunciou o mantra sagrado, há mais de 140 anos atrás.

1. Esta é a Imagem Sagrada presente no escritório de trabalho dos sacerdotes, aqui na Catedral Nikkyoji, em São Paulo. Aqui, todos os dias pela manhã, realizamos as nossas primeiras orações.


2. Nesta foto temos a Imagem Sagrada que fica na nossa sala de reuniões, na sala onde reunimos os sacerdotes após os cultos matinais. Nesta sala, depois de orarmos o mantra sagrado Namumyouhourenguekyou, temos uma reunião na qual cada sacerdote aponta os erros que perceberam nas atividades do dia. Fazemos isso como um sinal de humildade, para poder corrigir as falhas. Um ajuda o outro fazendo isso.


3. Este é um Altar portátil contendo a Imagem Sagrada. Neste dia ele foi utilizado pelo sacerdote Kyougyou Amaral, o sacerdote budista mais jovem do Brasil, entre todas as correntes. Foi durante o Culto dos Jovens, celebrado no dia 29 de maio de 2011. Podemos ver um incensário, que é este recipiente dourado e um incenso, que serve como forma de homenagem, de reverenciar a Imagem Sagrada. Tem também uma vela, que foi colocada para ornamentar o Altar.


4. Aqui é outra Imagem Sagrada, que fica presente no Hondo da Catedral Nikkyoji, em São Paulo. Hondo significa nave, onde ocorrem as cerimônias principais do Templo. Além do mestre Nichiren Daibossatsu, podemos ver velas que servem para ornamentar e alguns vasos, onde são colocados incensos como forma de homenagem à Imagem Sagrada.


5. Este Altar, que também tem uma Imagem Sagrada, fica na casa de um fiel, onde foi realizada esta visita assistencial pelo sacerdote Gyoen Campos. Na fotografia, tem uma xícara contendo chá e um recipiente contendo gohan, que é o arroz japonês. Estes alimentos são oferendas ao Altar Sagrado. A gente vê, ainda, um incensário, velas e arranjos de flores, que servem como ornamentação, além de fotografias de familiares falecidos do fiel que pediu o culto. Estas fotos são colocadas como forma de homenagem, para pedir oração ao falecido.


6. Este Altar também tem a Imagem Sagrada. Ele foi adaptado no ginásio do Templo Rentokuji, que fica em Campinas. Montamos para receber as cerimônias e festividades do nosso encontro de jovens, o ECOJUB 2011.

ORAÇÃO SAGRADA NAMUMYOUHOURENGUEKYOU ORAÇÃO SAGRADA NAMUMYOUHOURENGUEKYOU ORAÇÃO SAGRADA NAMUMYOUHOURENGUEKYOU

ORAÇÃO SAGRADA NAMUMYOUHOURENGUEKYOU ORAÇÃO SAGRADA NAMUMYOUHOURENGUEKYOU ORAÇÃO SAGRADA NAMUMYOUHOURENGUEKYOU

Prancha 18:

 

OBJETOS RELIGIOSOS II

 

Existe na HBS uma grande diversidade de objetos religiosos importantes, que são utilizados no nosso dia a dia.

1. Nesta primeira foto a gente tem um Altar contendo quatro placas, cada uma representando um grande mestre da HBS. A placa de trás representa Nichiren, a da esquerda Nitiryu, a da direita Nissen e a da frente Ibaragui Nissui, que é o padroeiro da HBS do Brasil. Ele quem trouxe o Budismo pra cá, em 1908. Antes dele não existia nenhum tipo de Budismo aqui, então ele também é o padroeiro do Budismo em geral no nosso país. Este altar da foto é ornamentado com arranjos de flores, que no Japão se chama Ikebana, é uma forma de arte, tem uma técnica especial para elaborar o arranjo. As flores são trocadas semanalmente ou quando temos um evento importante, grande. Lá no fundo da foto, temos o Altar Sagrado, com a escritura Namumyouhourenguekyou.

2. Este é o nosso Altar Póstumo, que é colocado na entrada do Hondo da Catedral, aos domingos. Nele, os fiéis fazem as suas homenagens aos falecidos. Cada um oferece um incenso pro Altar, em homenagem aos parentes e amigos que se foram.

3. Estas placas de madeira têm quase um metro de altura cada e servem para colocarmos os nomes de fiéis falecidos. No canto inferior esquerdo a gente vê o material que usamos para pintar estas placas. Tem um balde de tinta, os pincéis diferentes, com tamanho variado. Está tudo escrito em Kanji, que é a forma de escrita japonesa mais difícil.

4. Aqui é o Livro sagrado da HBS, contendo todas as nossas orações e preces, que serão pronunciadas durante as nossas cerimônias. Na imagem a gente vê, ainda, o microfone que o celebrante, normalmente eu, usa para falar com os fiéis. A gente vê também um relógio, para que o culto não exceda o tempo, para ter um controle.

5. Este é o Odyuzu, o nosso terço budista. Ele está sobre o porta-odyuzu. Todo fiel tem que ter este terço, que eles adquirem quando se convertem.

6. Aqui é o Livro de orações dos cultos, chamado Myookooichiza. Ele contém a nossa Liturgia, as orações que falamos durante os cultos matinais e noturnos.

7. Este recipiente é o local onde são depositados os pedidos, as orações, os terços e os protetores pessoais dos fiéis, chamados de Omamori. Eles são colocados aqui pelos fiéis antes dos cultos começarem. Depois, o recipiente é levado para o Altar durante a cerimônia. Aí o celebrante, que normalmente sou eu aqui na Catedral Nikkyoji, ora e abençoa os pedidos e esses objetos.

8. Aqui é o Omamori, o protetor pessoal do fiel da HBS. Cada fiel tem um protetor pessoal. Quando uma pessoa se converte, ela ganha um protetor desse, que é abençoado durante um culto. Ele é uma espécie de amuleto, que precisa ser abençoado perante o Altar Sagrado.



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Prancha 53:

 

FIÉIS II

 

1, 2 e 3. Nestas três fotos os fiéis oram o Namumyouhourenguekyou, antes de começar o Culto Matinal do domingo, dia 29 de maio de 2011. Percebe-se que eles batem com a mão direita na perna direita, ou na outra mão, como na fotografia 3, ritmando a oração sagrada Namumyouhourenguekyou. Estas batidas são a forma tradicional de orar. Toda vez que oram o Namumyouhourenguekyou têm que bater as mãos ritmando a oração. Entre os dedos, eles estão seguram o nosso terço budista, que a gente chama de Odyuzu.

4. Este é um fiel bem tradicional da Catedral Nikkyoji. Ele tem uma faixa que indica sua importância na expansão da HBS, ao longo dos anos de prática religiosa. Porque na HBS, quanto mais assíduo o fiel, quanto mais ele ajuda na expansão, mais ele evolui aqui dentro. É como se fosse uma arte marcial. Quanto mais o fiel participa e treina sua fé com boas atitudes, mais ele se gradua. Nessa foto ele também ora o Namumyouhourenguekyou batendo com as clavas, que também servem para ritmar o Mantra Sagrado. Entre os dedos da mão esquerda ele está segurando o Odyuzu, que é o nosso terço.

5 e 6. Aqui é o Hondo ou nave do Templo, quevai enchendo de fiéis, até começarmos o Culto Matinal de domingo. O Culto Matinal de domingo é o que fica mais cheio. Todos estão orando o Namumyouhourenguekyou, ritmados pelas batidas das mãos na perna. Eles estão olhando lá para o Altar, porque quando rezamos temos que olhar fixamente para a Imagem Sagrada, com a postura ereta e voz alta. Esse é o jeito correto de orar.

7. Os fiéis estão de pé nesta foto. Eles estão cantando a música tema do mestre Ibaragui Nissui Shounin, que é o padroeiro e fundador da HBS do Brasil. Eles estão olhando lá para o telão, onde está a letra da música, que é assim:

“Ele veio de um país distante e em sua bagagem, sonhos gigantes. Com muita fé, muita perseverança, tornou real o que era só esperança. Entre matas e cafezais enfrentou os ventos e temporais. Levou coragem em sua caminhada, a quem não acreditava em mais nada”.

“Oh, Mestre lbaragui Nissui Shounin, quero aprender a ser forte assim. Aprender os ensinamentos do Hokkekyou, e levar a fé por onde eu for”. 

“E assim, como a semente em terra fértil, transforma-se em árvore de rara beleza. Com raízes fortes em terra forte, mostrando toda força da natureza. Em sua face, a expressão da bondade, pregou a fé com tanta humildade. Com determinação, não hesitou, em pronunciar, Namumyouhourenguekyou”.

“Oh, Mestre lbaragui Nissui Shounin, quero aprender a ser forte assim.  Aprender os ensinamentos do Hokkekyou, e levar sempre comigo, Namumyouhourenguekyou”.

8. A fiel está dando o seu depoimento diante dos sacerdotes e outros fiéis da HBS, no Culto de Inauguração do novo Hondo, da nova nave do Templo Ryushoji, que fica em Mogi das Cruzes. Esse culto também celebrou o aniversário de 70 anos do Templo. Nesse depoimento aí, nossa fiel estava bem emocionada. Ela tinha um câncer muito grave e, com a força da oração do Namumyouhourenguekyou, foi curada totalmente. É uma benção, uma graça concedida pelo Namumyouhourenguekyou. Em japonês, chamamos isso de goryaku



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Conclusão:

 

            Pouco mais de dois anos se passaram desde o meu primeiro contato com os sacerdotes e fiéis da corrente budista Honmon Butsuryu-shu. Desde então, percorri gradativamente um caminho outrora obscuro, mas que foi se delineando em conformidade com cada passo da minha pesquisa.

De fato, minha jornada teve como alicerce o grande interesse de inserção dentro da comunidade HBS do Brasil, para remontar com ela (e por meio de imagens fotográficas) uma história de quase 104 anos, que coloca em cena os meandros da primeira corrente budista em solo brasileiro. Tal trabalho foi composto, grosso modo, por três momentos fundamentais, que estabeleceu o pilar tripartite do meu empreendimento:

O primeiro consistiu na leitura de livros e revistas que contavam a história do Budismo em geral e da corrente Honmon Butsuryu-shu, especificamente, que resultou na compilação dos dois primeiros capítulos da minha dissertação, elaborados pela necessidade de melhor compreender o contexto sócio-cultural no qual me inseria. Esta pesquisa, realizada antes da primeira etapa em campo (que ocorreu entre os dias 26 e 29 de maio de 2011), facilitou minha inserção na comunidade HBS, passando do status de um simples “leigo simpatizante” para o de um interlocutor em potencial da comunidade.

            Partindo desta base histórica/lendária ou, melhor dizendo, mitológica, a segunda e fundamental etapa consistiu nos quatro dias passados na Catedral Nikkyoji, registrando todas as atividades religiosas e laicas realizadas pelos sacerdotes e fiéis. Tal degrau serviu para a produção da parte mais significativa das entrevistas e fotografias, além de ter propiciado uma profunda imersão/aceitação dentro da comunidade em questão.

            Já no terceiro passo, elaborei o material contendo as 58 pranchas verbo-visuais, de acordo com o modelo célebre de Margaret Mead e Gregory Bateson, e entreguei aos sacerdotes da Catedral Nikkyoji, que o analisaram por um período de dois meses. Após este intervalo necessário, os religiosos me devolveram tal conteúdo com as devidas alterações escritas, novos comentários e reorganização das fotografias, que serviram para enriquecer e, mais do que isso, adequar tais pranchas à realidade por eles assimilada.

            É importante ressaltar, ainda, que a construção da minha pesquisa abordou conceitos-chavecomo memória, reconstrução verbo-visual e (re)montagens fotográficas, tendo também a possibilidade de melhor desenvolver, futuramente, questões de fundamental importância no debate antropológico, que foram elencadas no presente trabalho.

É possível pensar nas imagens, em geral, e no ato fotográfico, especificamente, como um alicerce material e ritualizado (já que envolve uma interação entre observador, observados, espectadores das imagens, temporalidades e relações espaciais distintas), fundamental para a observação e identificação do campo e do contexto ritual e para a percepção e análise simbólica das práticas religiosas da comunidade HBS.

Assim, ultrapassando a mera descrição dos rituais por mim presenciados, é possível buscar compreender a estrutura geral e os diversos elementos simbólicos que envolvem tais manifestações religiosa, repleta de gestos, posturas, cânticos, orações, instrumentos musicais (taiko, mokin, sinos, clavas) e objetos religiosos importantes, como o Odyuzu.

O material imagético coletado permitirá, ainda, realizar uma comparação imagética entre as cerimônias realizadas pela HBS no Brasil e no Japão. A intenção aqui é descobrir como uma expressão religiosa oriental realiza um processo de adaptação e aceitação sócio-cultural no contexto brasileiro. Neste sentido, é essencial notar a existência de um vocabulário ocidentalizado (termos como ascese, arcebispo, sumo-pontífice, catedral, Papa e Deus são utilizados pelos religiosos e fiéis da HBS do Brasil), criado para representar os personagens religiosos do ritual no Brasil. Este vocabulário surpreende, pois utiliza termos de uma tradição muito assimilada pelo cristianismo, apropriada por uma religião oriental. Isso significa uma série de adaptações, traduções, incorporação de um vocabulário e, até mesmo, da arquitetura.

 

Além disso, existe a questão da fotografia como registro e também como um ritual moderno, que envolve diversos personagens como o fotógrafo, a comunidade fotografada (que realiza uma performance diante da câmera) e os espectadores das imagens. Neste caso, o intuito é compreender como se dá, em primeiro plano, a aceitação de um fotógrafo/antropólogo outsider em uma comunidade, até o ponto deste observador ser incorporado e aceito como fotógrafo oficial dos principais rituais da religião no Brasil, mesmo sem ter sido convertido. É possível, ainda, considerar o ato (ritualizado) de olhar para um álbum de fotografias e rememorar os acontecimentos impressos, como se as fotografias tivessem o poder mágico de revitalizar o tempo, o espaço e os personagens envolvidos na trama fotográfica.

O último e fundamental ponto colocado em voga no presente texto refere-se ao importante debate sobre o próprio fazer antropológico (e, também, ao texto etnográfico), tendo como ponto de partida autores de uma antropologia pós-moderna que priorizam o olhar dialógico em detrimento de uma abordagem clássica do “outro”, através de uma pesquisa de campo compartilhada com a comunidade estudada, que também encontra, nas imagens, um campo fértil para o desenvolvimento de interações que ultrapassam a relação observador/observado.



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