Lourdes Gonçalves Furtado

Antropóloga; Pesquisador Titular MCT - Museu Paraense Emilio Goeldi, Coordenação de Ciências Humanas.
Área: Antropologia, Laboratório de Antropologia dos Meios Aquáticos-LAMAq e Docente do PPGSA/UFPA.




  Compreendida como uma técnica ou como um objeto de análise, a imagem é um tipo de linguagem onde ideias e sentimentos são expressos, condensados e muitas vezes manipulados. A imagem carrega consigo uma história, pois está inserida em um dado contexto sociocultural e foi captada pela subjetividade de seu ator. Na tentativa de compreender os fatos sociais e de ser o mais fiel possível à realidade observada, o uso da imagem representa uma das principais ferramentas para a construção do conhecimento antropológico, pois permite expressar as experiências dentre outros aspectos, a vida cotidiana de diferentes grupos sociais. Nesse sentido, a imagem, longe de ser um mero registro de uma dada situação, figura como uma representação sobre o real que certamente, pode ser compreendida a partir de diferentes perspectivas.

  Na entrevista a seguir, a Antropóloga Lourdes Gonçalves Furtado, fala sobre a importância do uso da imagem para o fazer antropológico e sobre o Banco de Imagens de Populações Haliêuticas da Amazônia Brasileira, construído em parceria com outras pesquisadoras do Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG), durante seu percurso enquanto antropóloga.


  Genisson Chaves: Por que usar a imagem no trabalho científico?

  Lourdes Furtado: As imagens, entendidas como fotografias ou fotos, na linguagem mais coloquial, atualmente tendem a assumir o papel dos desenhos, os quais outrora ocuparam uma posição de destaque nas obras de antigamente: de escritores, historiadores, cientistas, cronistas e viajantes do século XIX, por exemplo, ou mesmo presentes em obras de tempos mais remotos. A biblioteca do Museu Paraense Emilio Goeldi, é um repositório de obras nas quais os desenhos ilustravam o pensamento do autor, ou apresentavam uma expressão mais eloquente do cenário de seus trabalhos. Confira as obras de Alexandre Rodrigues Ferreira, Emilio Goeldi, José Veríssimo, Henri Coudreau, Jean de Léry – em sua Viagem è terra do Brasil. Spix e Martius em sua viagem pelo Brasil entre 1817-1820. Lembro ainda livros de História do Brasil impecavelmente ilustrados com os bicos de penade Percy Lau. Trabalhos de antropólogos do Museu Emilio Goeldi-MPEG, igualmente ilustrados com desenhos de Guilherme Leite – assinado G Leite. Para mim, são obras icônicas!



  O usuário desses tipos de ilustração, isto é o autor, ao usar o desenho ou a fotografia na verdade queriam e querem expressar de modo mais eloquente e complementarmente, cenas da vida cotidiana, cenas do meio ambiente, eu diria, no desejo de expressar complementarmente o que viu, ou o eu estive lá. Embora hoje a imagem fotográfica exerça a hegemonia no mostrar cenários, pessoa, biodiversidade, etc, o desenho não perdeu sua validade. Tantos cientistas ainda apresentam em sua escrita etnográfica desenhos referentes ao contexto de seus trabalhos de campo.

  Além do desejo de expressão do autor, através do seu próprio traço ou de terceiros, havia certamente a razão prática de transmitir aos leitores aspectos de seu estudo, ou de suas crônicas, ou relatos. Uma forma de comunicação dialógica entre o autor da escrita e o leitor. Uma forma de registro para a posteridade.



  Genisson Chaves: Que contribuições o uso da imagem pode trazer para a Antropologia?

  Lourdes Furtado: Avançando nas considerações do quesito anterior, diria que além desses fatores, tanto a fotografia quanto o desenho, não se excluem mutuamente. Na Antropologia eles coexistem embora se reconheça o primado da fotografia como forma de ilustração, como recurso a mais para dizer de uma dada situação, de traduzir uma certa paisagem, ou de traduzir o meu olhar sobre determinado objeto – não qualquer paisagem, não qualquer objeto, mas aquela ou aquele objeto que é referência ao contexto em que estou trabalhando, ou trabalhei!

  Atualmente com a popularização das câmeras, a facilitação de aquisição no mercado, e os recursos visuais que elas apresentam, a fotografia tem o primado da preferência sobre o desenho, devido a recursos refinados em termos de revelação que ela pode oferecer ao pesquisador. A fotografia, no caso, é um instrumento de análise, de avaliação, de conhecimento – é texto que precisa ser lido pelo leitor!

  Ora Malinowski, antropólogo, um dos ícones da Antropologia Social Britânica, no seu impecável trabalho nas Ilhas Trombriand, no Pacífico Ocidental, nos brinda com o seu Argonautas do Pacífico Ocidental, com fotos de rituais, por exemplo, de uma botadura de canoa, isto é, de um rito de inauguração de uma embarcação depois de construída! Nos mostra um costume local passível de analogias alhures em outras latitudes, em outras escalas geográficas. Assim ele nos deixa como legado registros da história e cultura de um povo, cujos descendentes continuam lá; de uma região, de um rito de passagem próprio dos Trombriandeses, de uma história, de traços culturais de um povo habitante de uma região em que o pesquisador trabalhou por cerca de 4 anos – de 1914 a 1918 – período da Primeira Guerra Mundial. É claro que as fotos trazem o olhar de Malinowski, traduzindo uma situação por ele como testemunha e que sugere interpretação a partir de outros olhares; sugere novas traduções a partir das expedições de novos pesquisadores.



  Genisson Chaves: Por que a senhora começou a construir um banco de imagens? Como foi? Foi desde o início do seu trabalho enquanto antropóloga?

  Lourdes Furtado: Justamente por assim conceber a imagem, a foto, o desenho! Genisson, desde menina gostava de fotografia, meu pai gostava de fazer fotos, tirar uma foto, tirar uma foto instantânea. A convivência me fez gostar. De longe pensar que sou boa fotógrafa, tecnicamente falando. Então ainda menina, brincava de fazer fotos – usava uma caixa de pó de arroz (da marca Coty) que tinha um orifício revestido de plástico transparente no fundo (o qual mostrava a textura do cosmético) – era a lente da máquina. Pendurava um fio e saia fotografando imaginariamente (imitando os fotógrafos da época). Como resultado o produto era um papel com um desenho e entregava para o modelo! Cresci e tive oportunidade de fotografar com câmera Kodak, parcimoniosamente.

  Como aprendiz do ofício de antropólogo, por orientação de Eduardo Galvão, meu Orientador científico no Museu Paraense Emilio Goeldi, desde 1967 até 1976, tive oportunidade de treinar meu olhar para obter imagem, tanto quanto possível, antropológica, isto é, a partir do enfoque temático de sua pesquisa e das possibilidades de compartilhamento do povo com o qual você está trabalhando. Fotografar há que ter a anuência do interlocutor!

  O Banco de Imagens, sim. Temos um no LAMAq – Laboratório de Antropologia dos Meios Aquáticos da Coordenação de Ciências Humanas do MPEG, intitulado Bip-RENAS onde armazenamos imagens de nosso trabalho de campo. Nosso porque construído pela equipe de pesquisadores, bolsistas do Projeto Recursos Naturais e Antropologia das Sociedades Pesqueiras-Projeto RENAS. Abrange estudos e pesquisas nacionais e em cooperação internacional. É um banco em construção focado para as populações pesqueiras ou haliêuticas, particularmente as amazônicas.



  Genisson Chaves: Como a senhora analisa a relação entre uso de imagens e a questão da ética?

  Lourdes Furtado: A ética precede a tomada de imagens, principalmente nos dias atuais que se ampliou a consciência dos direitos de imagem. Como princípio ético não se pode chegar tirando fotos a esco sem o consentimento das pessoas; mesmo que sejam fotos de artesanatos sem enfocar o artesão: é necessário, de bom tom, ético se pedir a devida permissão. Para prevenir situações de constrangimento, tanto para o interlocutor quanto par si, num trabalho de campo se deve estar munido de documento em que o fotografado assine, declare permissão para tomadas de imagem.



  Genisson Chaves: Que perspectivas a senhora aponta em relação ao futuro da imagem com a Antropologia?

  Lourdes Furtado: Cada vez mais a imagem, enquanto foto ou enquanto vídeo, é um recurso visual e audiovisual de grande apelo para o trabalho do antropólogo, sobretudo como instrumento para traduzir o seu trabalho de campo numa comunidade, numa escola, numa universidade, num grupo indígena, num grupo urbano, ou seja, em qualquer grupo social. Um excelente auxiliar na apresentação dos resultados da pesquisa. Junto com o artigo ou o livro, os textos para-didáticos, produzidos como resultados das análises, dos trabalhos de campo, formam uma trilogia formidável. Nessa linha de pensamento vejo o quão necessário é se conservar as imagens – fotos, slides, filmes super-8, vídeos como base de documentários sobre patrimônios locais materiais e imateriais de cunho regional e nacional. É proteção aos conhecimentos, aos saberes locais. É ação prática para a construção de memória; é peça reveladora de identidade sociocultural e de dinâmicas sócias.



Belém, 29 e 30 de Maio de 2014.





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