Caminhando em branco: fotoetnografia da festa de Yemanjá em João Pessoa, PB



Thiago de Lima Oliveira

Universidade Federal da Paraíba, Brasil.


    “Vamos, meu povo... temos que cantar e mostrar à cidade a nossa fé”, assim pai Gilberto chama seus filhos e convidados a tomarem parte na procissão que marca publicamente as comemorações do Dia de Yemanjá em João Pessoa, capital paraibana. A fala, em seu misto de imperativo e injunção, mais que convocar os participantes à unirem-se junto à massa vestida em branco, possibilita refletir alguns dos elementos da vivência dos cultos afro-brasileiros na contemporaneidade aos quais venho me dedicando a refletir a partir de um entrecruzamento entre uma antropologia dos rituais e uma antropologia urbana. Na esteira desses processos, o trabalho aqui apresentado busca evidenciar elementos das práticas religiosas desde uma perspectiva dos modos de significação e construção da experiência urbana em cidade de pequeno e médio porte. Em suma, o exercício aqui construído busca pensar o fluxo devocional manifesto pela caminhada como uma disputa e negociação da cidade.

    A festa de Yemanjá é um dos principais momentos do calendário festivo das religiões afro-brasileiras na cidade de João Pessoa. Na cidade a festividade é realizada no dia 8 de dezembro, comemoração do dia de Nossa Senhora da Conceição, entendida como Yemanjána lógica sincretista. A festa é organizada e financiada pelo Palácio de Xangô Alafim, terreiro da nação Moçambique dirigido pelo babalorixá pai Gilberto. O ápice é a caminhada da panela de Yemanjá, momento em que se realiza uma procissão desde o Palácio de Xangô, no bairro de cruz das Armas, zona oeste da cidade, até a Praia de Tambaú, região de classe média-alta. Participam da procissão os frequentadores do terreiro, além de curiosos e pesquisadores. Carros alugados ou emprestados conduzem cada uma das divindades louvadas na festa: Exu, Pombagira, Oxossi, Ogun, Omolu, Nanã, Yansã, Oxum, Yemanjá,Xangô e Oxalá. Ainda que não seja honrada como “orixá”, adverte pai Gilberto, a Pombagira é honrada pela sua importância e papel no culto da nação Moçambique.Outros orixás participam da festa mas não têm um lugar na procissão.

    Os cultos da nação Moçambique têm se constituído como um território de disputa intensa na cidade. Apesar da Festa de Yemanjá ser uma das maiores manifestações públicas e de visibilidade das religiões afro-brasileiras na cidade de João Pessoa, tal nação é representada em contexto local quase que unicamente por pai Gilberto e seus filhos e filhas. Na cidade, uma parte significativa das casas de culto de candomblé e umbanda estão vinculadas à Federação dos Cultos Africanos da Paraíba, uma associação que visa promover uma maior integração e proteção às religiões afro-brasileiras e de matriz africana na cidade. O Palácio de Xangô Alafin não é confederado à tal associação, e o pouco conhecimento sobre a real existência ou não de uma nação Moçambique tem sustentado uma série de disjunções e intrigas.No escopo desse trabalho, tomo tais intrigas e fofocas como um processo de disputa pelo poder-saber (FOUCAULT, 2003) sobre os rituais. Em outros termos trata-se de uma disputa efetiva e simbólica sobre o controle do fluxo de informações e conhecimentos que caracterizam o campo religioso do candomblé, ou nos termos de Hannerz (1992) um processo de gestão do fluxo de conhecimentos e informações culturais que, se por uma lado viabiliza a produção de distinções e agregados sociais –os de nação nagô, os de nação queto; “aqui fazemos assim, na outra nação se faz de modo distinto”, por exemplo – também devem ser pensados como um processo de disputa pelo próprio conhecimento sobre alguma verdade da religião e sobre a efetividade e benefícios de suas práticas mágicas e devocionais-religiosas.

    Em seu trajeto desde o terreiro até o ponto de encontro os devotos vão desenhando uma trilha branca sobre o asfalto preto, invertendo assim a ordem cotidiana que condiciona sua fé às margens das normas hegemônicase à própria periferia da cidade. Durante todo o percurso pontos, músicas e toques são entoados, anunciando aos residentes a profissão de fé. No caminho os devotos encontram-se com outros terreiros abertos por filhos e netos de Pai Gilberto que saem das suas cidades e bairros para o grande encontro no Palácio de Yemanjá, construído na praia com madeiras e tecidos para receber as procissões e grupos de diversas cidades. Ali, ao chegar, são depositadas as jarras com ofertas que serão entregues à deusa no fim das apresentações. Ao redor do Palácio, devotos, crentese curiosos acendem suas velas e entregam seus presentes à divindade jogando-os ao mar, agradecem ou barganham dádivas. Entre aplausos e gritos, cada orixá entra e faz sua dança no palácio, cabendo aos acompanhantes da procissão fazer somar suas ofertas para a divindade no pedestal central localizado no centro do palácio onde as ofertas vão amontoando-se. Terminadas as apresentações, as ofertas “públicas” são levadas até o mar pelos barcos e os participantes da festa começam a desmontar-se de suas fantasias e roupas santas e encaminhar-se em grupos para os pontos de ônibus com o objetivo de regressar às suas casas.

     Nos 16 quilômetros que separam o templo principal, o Palácio de Xangô Alafin, do local de destino, o Palácio de Yemanjá na praia de Tambaú, área nobre da cidade, conflitos e tensões são ensaiados e estratégias de contornos que eventualmente passem desapercebidas no cotidiano se tornam evidentes. Aqui, de um modo ritualístico e temporalmente circunscrito, o jogo de posições que determina o lugar dos cultos afro-brasileiros e seus devotos e as religiões cristãs são embaralhados. A missa católica dá uma pausa momentânea e alguns devotos seguem até a escadaria para visualizar de que se trata o burburinho externo; ali, candomblecistas e cristãos ora se cumprimentam cada um orgulhoso de sua fé, ora trocam insultos e acusações. Enfrentam os olhares de desaprovação da maioria branca nas janelas dos edifícios, ou de uma parcela protestante que segue a caminhada acompanhando-a das janelas dos ônibus. Ao fim, curiosos e participantes da marcha vindos de diversas partes ainda são confrontados por missionários neopentecostais que portando pequenos amplificadores e material informativo buscam dissuadir o público sobre os propósitos daquele evento.

    Na tentativa de resolução ou mesmo afastamento dos conflitos na ocasião da festa estratégias diversas são adotadas. Desde aquelas de caráter mágico e religioso, como o uso do branco, de galhos de arruda e braceletes especiais, até mesmo táticas de natureza civil, como a convocação das forças policiais e das instâncias competentes pelo transporte e mobilidade urbana para que se dê conta de conter e disciplinar determinadas ações ofensivas e geradoras de contenda entre o grupo e outros atores.



Referencial Bibliográfico

FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. São Paulo: Edições, Loyola, 1997.
HANNERZ, Ulf. Cultural Complexity: studies in the social organization of meaning.
Nova York: Columbia University, 1992.

Figura 1: Devota adornada com símbolos, enfeites e proteções no salão do templo antes da saída da procissão. Figura 2: Devotos iniciam a chegar de outras regiões e municípios vizinhos e encontram-se frente ao palácio de Xangô Alafin para dar início à procissão. Todos vestem branco, seguindo as orientações da fé e pedido do patriarca, Pai Gilberto, yalorixá responsável pelo templo e pela festa. Figura 3: Já montada no carro, menina de 14 anos representada e vestida com as roupas ritualísticas atribuídas à Yemanjá se apresenta para o público de religiosos e curiosos. Figura 4: Já a caminho, os devotos vestidos de branco e adornados com suas guias seguem cantando pontos devotados aos orixás, fazendo preces e entoando músicas. Sobre a cabeça, muitos participantes levam um pequeno ramo de arruda com fins de afastar a má sorte e os desejos negativos daqueles com os quais cruzam nos 16 quilômetros de caminhada.  Figura 5: Pontos, encruzilhadas e caminhos desenham o trajeto dos devotos pelos espaços da cidade. Figura 6: Encontro com grupos e templos de outras cidades vizinhas nas proximidades do Palácio de Yemanjá, aprontado para a ocasião do ritual nas areias da Praia de Tambaú, uma das áreas mais nobres da cidade. Figura 7: Tendo chegado ao palácio da homenageada, os devotos levam suas ofertas à divindade: perfumes, flores, espelhos, pentes, velas e adereços que remetem à beleza e ao mar são os principais objetos oferecidos. Figura 08: Os orixás começam a entrar no Palacio de Yemanjá, onde serão apresentados e farão sua dança após a entrega das ofertas para o responsável pelo templo. Figura 09: Adereço de Omolu. Tradicionalmente chamado de “contra-egun”, tal peça é usada para repelir a ação dos gênios desencarnados que podem causar mal aos viventes. Omolu, aqui na condição de deus da doença e da cura, é seu principal portador. Figura 10: A dança dos orixás no Palácio de Yemanjá. Ao chegar no Palácio cada orixá é devidamente apresentado ao público e em seguida performatiza sua dança. Na imagem, o auxiliar do yalorixá (de branco, no primeiro plano) recepciona a divindade Omolu que se apresenta enquanto seus colaboradores (ao lado esquerdo, segurando um cesto) lançam pipoca em torno do terreiro para purificar o espaço. Na margem extrema esquerda, Exu e Pombagira, cantam e saúdam seu companheiro. Figura 11: Oxum, aqui tomada por uma jovem adolescente, espera sua entrada e apresentação no Palácio, como os demais orixás. Na ocasião a plateia interage com a aparição de cada uma das divindades, ora cantando, ora vibrando ou tão somente fazendo suas preces de modo individual. Figura 12: Xangô, por tantas vezes tomado como companheiro mitológico de Yemanjá chega ao Palácio e é recepcionado pela anfitriã e seus demais orixás convidados. Da esquerda para a direita: Oxossi, Omolu, Nanã, Yansã e Oxum. Na ponta direita a representação de Yemanjá. Figura 13: Uma das personagens mais esperadas da noite, finalmente chega ao palácio Yemanjá. Aqui uma jovem representa todo o cuidado e apreço da deusa pela beleza. Figura 14: Ao fim das apresentações, os responsáveis rituais pela música, os ogams, convidam orixás e participantes para a deusa. Após esse momento, a panela é finalmente levada aos barcos pelos devotos e responsáveis pelo Palácio. Nos barcos ela será conduzida até o mar onde será oferecida de modo próprio.

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