A representação do segredo ritual para as religiões Afro-Alagoanas e suas relações com os meios de registro etnográfico



Larissa Fontes [!]


Resumo

Tendo como ponto de partida um ensaio fotográfico onde registrei um ritual de iniciação no candomblé, realizado em 2011 e tema de minha monografia de conclusão de curso, o objeto central desta pesquisa é a representação do segredo para as comunidades de matriz africana em Alagoas e as barreiras encontradas no acesso a informações, cerimônias e rituais. O segredo é analisado como um fenômeno de negociação, algo mais relacionado a controle de acesso do que a conteúdos específicos. Outro aspecto abordado neste trabalho são as relações do segredo com as técnicas de registro etnográfico na perspectiva das negociações tecidas entre pesquisadores e religiosos.

Palavra-chave: Segredo; Religiões Afro-brasileiras; Fotografia; Antropologia Visual; Religiões afro-alagoanas.




Abstract

Taking as a starting point a photography essay in which I registered an initiation ritual in candomblé in 2011 (subject of my course conclusion monography), the central object of this research is the representation of the secret to the religious communities of African origin in Alagoas, and the boundaries on the access to information, ceremonies and rituals. The secret is analyzed as a phenomenon of negotiation. Something more related to control access than to specific contente. Another aspect addressed in this work is the relationship between secrets and the techniques of ethnographic record, as well as between researches and religious people.

Key-words: Secret; Afro-brazilian Religions; Photography; Visual Anthropology; Afro-alagoanas Religions.




Visualizar Artigo
Arquivo em PDF





A representação do segredo ritual para as religiões Afro-Alagoanas e suas relações com os meios de registro etnográfico



Larissa Fontes [!]

INTRODUÇÃO

Meu primeiro contato com o candomblé foi marcado por um encantamento drástico:no momento em que pisei naquele terreiro soube que este seria o tema que me acompanharia em minha jornada. Só não poderia imaginar quão tão tensa essa jornada seria – no melhor sentido que a palavra possa ter.

Era fim de 2010 e me via experimentando um misto de medo e excitação ao me preparar para produzir uma reportagem para o veículo impresso em que, ainda estudante, estagiava como repórter-fotográfico e escrevia algumas matérias num caderno chamado Universidades, reservada a nós, aspirantes. A princípio, o tema seria a diferença entre candomblé e umbanda. A entrevista estava marcada para o início da tarde e, no caminho, tivemos que desviar rota para cobrir uma pauta de última hora, coisa comum no cotidiano das redações de jornal. Reparem na sincronicidade: o que acontecia era uma reunião na OAB entre advogados e religiosos de matriz africana alarmados com episódios de violência e de intolerância religiosa sofridos por alguns terreiros locais.

Na produção dessa reportagemtomei conhecimento de um episódio que havia irremediavelmente maculado a história dos cultos afro-alagoanos: o Quebra de Xangô.Vou me deter nele mais tarde, em momento mais oportuno. Um novo universo se abria diante de mim, e eu, que não tinha ideia de que minha cidade guardava em sua história algo tão terrível e fascinante, estava arrebatada.

Levada por um colega que estava se iniciando na religião, o primeiro terreiro que visitei foi o Ilê Axé Legionirê, um terreiro de candomblé auto identificado como de nação Angola-Jeje-Mahin-Vodun-Daomé, no bairro do Benedito Bentes (bairro mais populoso de Maceió[1]) e comandado pelo babalorixá Manoel de Lima Teixeira, conhecido como Pai Manoel do Xoroquê – ator principal de meu trabalho.

Nesse momento eu estava em meuúltimo ano da graduação em Comunicação e precisava começar a pensar no trabalho de conclusão de curso. Decidi que aquele seria meu objeto de estudo. Comecei a estudar a religião, sem saber ainda que recorte daria: frequentava as festas públicas, com a câmera fotográfica sempre em mãos, fazia entrevistas informais e simplesmente convivia com a comunidade. A cada término de festa, o babalorixá reunia um reduzido número de pessoas em sua casa, situada ao lado do terreiro.As noites eram regadas com muita animação e contação de histórias e casos: era o momento em que, naturalmente, os dados mais facilmente apareciam e o entendimento melhor se fazia. Estas ocasiõeslogo se tornaram preciosas para mim.

No decorrer dos estudos, cheguei ao trabalho do fotógrafo José Medeiros, que em 1950, em colaboração com o repórter Arlindo Silva, havia produzido uma reportagem intitulada “As noivas dos deuses sanguinários”[2]para a extinta revista O Cruzeiro, registrando um ritual de iniciação em um candomblé de Salvador. A história era mais delicada: outra exposição jornalística havia sido veiculada anteriormente pela revista francesa Paris Match, intitulada “Les possédées de Bahia”, escrita e fotografada pelo cineasta francês Georges Clouzout e tinha sido, na verdade, a motivação de OCruzeiro para fazer sua publicação. Milton Guran, no prefácio de do livro de Tacca, diz que esta reportagem brasileira, mais do que a francesa, “mexeu profundamente com a representação do candomblé enquanto culto religioso e agitou perigosamente seus seguidores, principalmente em Salvador” (GURAN, apudTACCA, 2009). A reportagem de Medeiros e Silva trazia imagens impressionantes e jamais antes publicadas de um ritual de iniciação no candomblé.[3]Voltarei a este assunto.

Mais uma vez me via encantada, desta vez com a complexidade do ritual de iniciação. Decidi concentrar minha pesquisa nele. O ritual de iniciação no candomblé, denominado Feitura de Santo, é um ritual secreto, inacessível a não adeptos e, em alguns casos,somente permitido a indivíduos situados em escalas mais altas da hierarquia religiosa da casa - ou seja, em funções sacerdotais auxiliares à do iniciador; somente pessoas que possuem cargos na religião participam. É o rito mais importante da vida candomblecista e sobre eleincide o maior grau de segredo ritual. Confesso que, em meio ao mix de novidades que experienciava nesse momento, haviaum quê de excitação de fotojornalista no querer registrar o secreto. O “furo”, o inédito, tudo aquilo me empolgava.

A essa altura, já havia sido criada uma familiaridade com os integrantes da casa, de modo que, quando apresentei a proposta da pesquisa para o líder religioso, já existia uma relação de confiança mútua: para minha própria surpresa,foi-me dada a primeira permissão. Digo “primeira”, porque ela só seria de todo confirmada após o jogo de búzios que revelaria a permissão maior, a dos orixás. Jogados os búzios, obtive a permissão. Aguardei e me preparei psicologicamente durante meses que algum novo membro “entrasse na camarinha[4]”. Por volta do meio do mês de setembro fui informada da entrada de uma moça, que viria a acontecer no próximo mês, no dia 18 de outubro.

Durante o ritual, que dura cerca de 21 dias, visitei a casa regularmente, ao menos duas vezes por semana, para acompanhar e registrar o processo. Todo o trabalho foi fotografado com uma objetiva 50mm por conta da abertura do diafragma (f/1.8), que permitia uma maior captação de luz, já que a maioria das cerimônias acontecia em locais fechados ou em horários em que já não havia mais luz natural.

Ao término do trabalho,[5] ele já suscitava várias inquietações que eu pretendia aprofundar em pesquisas futuras, mas a partir de uma experiência pessoal fui trazida ao presente recorte. Este episódio ocorreu na ocasião do I Seminário Estadual de Povos de Matrizes Africanas, realizado em fevereiro de 2013 no auditório de um hotelem Maceió, organizado pelos religiosos juntamente com algumas instituições governamentais de saúde e cultura. Eu já transitavano universo das religiões afro-alagoanas há dois anos e, paralelamente à minha pesquisa no Ilê Axé Legionirê, minha presença era constante em festas públicas e eventos de diversos terreiros, sempre fotografando. Digamos que eu já era uma figura relativamente conhecida em meioao povo de santo.

Fui convidada para falar sobre a importância do registro para a memória em umPainel intitulado “Cultura, Mídia e Terreiro”, ao lado de outros dois colegas jornalistas envolvidos em trabalhos nessa temática. No Seminário, onde também seriam discutidas políticas de saúde para as religiões de matriz africana, estavam presentes figuras importantes da comunidade religiosa afro-alagoana. Esta comunidade carrega uma bagagem histórica peculiar, que contribuiu para a constituição de sua visão de mundo e de seu pensamento atual, especialmente no que tange a discussões e tabus em relação ao segredo ritual e às formas de resistência e preservação da religião.

Em determinado momento de minha fala, indaguei qual seria a visão dos sacerdotes e sacerdotisas presentesa respeito da inserção de pesquisadores em suas Casas. Não são muitos os que se dedicam a esta temática em Maceió. Falar sobre as religiões de matriz africana não é possível sem considerar e abordar relações de poder, rixas e fofocas. Maceió é uma capital com ares de cidade pequena; praticamente toda a comunidade religiosa[6] se conhece e se relaciona. Então, as notícias correm. Certamente, muitos já tinham ouvido falar sobre o resultado de meu trabalho na casa de Pai Manoel – e, como comprovei posteriormente, embora não tivessem tido acesso às fotos, não eram muito simpáticos a esse tipo de registro.

O primeiro líder religioso a pedir a palavra em resposta a minha indagação tinha ciênciade meu trabalho e, segundo se comentava, tinha uma pequena rixa com Pai Manoel. Em seu discurso, ele frisou que jamais permitiria que os segredos da camarinha fossem fotografados. Percebam: mudou o foco do levantamento que eu havia feito. Todos seguiram reiterando seu discurso.Ninguém maisse lembrava do que eu tinha perguntado. Assim, minha indagação foi deixada de lado, dando lugar a uma inesperada polêmica. A fala de uma das iyalorixás presentes – muito respeitada no Estado por ser uma das mais velhas -, me chamou a atenção. Ela dizia que a divulgação desses segredos enfraquece a religião.

A esta altura eu já me encontrava extremamente desconfortável com o bombardeio de posições negativas a meu trabalho. Ao fim dos discursosocorreu o que viria a ser o divisor de águas da situação. Uma iyalorixá vinculada ao terreiro retratado[7] (e objeto da discussão), estava presentee pediu a palavra. Reproduzirei aproximadamente seu discurso:

“Como representante do Ilê Axé Legionirê, eu gostaria de dizer algumas palavras. Eu, pessoalmente, uma reles elegun[8], também não concordo com a exposição de nossos fundamentos secretos. Mas, como todos sabem, a casa pertence a Exu[9], o orixá da comunicação, o desbravador, o pioneiro. Então, se ele autorizou que fosse feito, quem sou eu pra contestá-lo? Tinha mesmo de ser ele a autorizar que, pela primeira vez no nosso Estado, um ritual desse fosse fotografado e estudado. Além disso, o que foi mostrado neste trabalho foi como se tratar um iaô[10], com todo o respeito e fundamento necessários.”

Após este discurso, as pessoas que já haviam se posicionado antes fizeram questão de pedir a palavra novamente – tendo sido a referida iyalorixá mais velha e respeitada a primeira a fazê-lo. Procuraram se explicar ao dizer que se o orixá havia permitido, não havia o que ser questionado, nem julgado. E assim, o discurso foi se transformando, se ressignificando nesta perspectiva do domínio religioso, a autorização do orixá.

Meu alívio foi tamanho que não pude esconder um sorriso de agradecimento. Quando a discussão terminou, alguns pais e mães de santo vieram me cumprimentar, como quem mostra solidariedade. Um deles segurou minhas mãos, me disse carinhosamente que eu “não ligasse para aquilo tudo”, me parabenizou pelas fotografias e disse que as portas de sua casa estariam abertas para mim. De novo: alívio.

No mesmo dia, no caminho de casa, depois deste episódio, refleti sobre a representação do segredo para estas comunidades religiosas.Aquela situação me colocou em outro lugar como fotógrafa e pesquisadora. O tema havia se tornado o alvo maior da discussão e despertou-me para pensar as barreiras encontradas no acesso às informações, cerimônias e rituais e no que elas contribuem para a formação do pensamento e mesmo da identidade dos religiosos. Foi a partir deste episódio, então, que meu projeto se clareou e se delimitou, embora eu ainda me questione sobre meu lugar como pesquisadora e, principalmente, ainda me pergunte, inspirada pelos burburinhos,quem sou eu para adentrar no segredo dos outros.

Sendo assim, tendo como ponto de partida a experiência do registro foto-etnográfico realizado por mim, este estudo também procurará as relações do segredo ritual com as técnicas e meios de registro etnográfico, enfocando as negociações tecidas entre pesquisadores e religiosos, no que tange aos processos de documentação e construção de acervos. Discussões envolvendo as relações de ética também serão abordadas em vista do interesse antropológico na documentação dos ritos considerados secretos. Abordarei também os posicionamentos dos pesquisadores diante das possíveis publicações.

QUANDO O SEGREDO DEIXA DE SER SEGREDO – PANORAMA HISTÓRICO DAS DISCUSSÕES SOBRE O SEGREDO DAS RELIGIÕES DE MATRIZ AFRICANA

O início da discussão sobre segredos revelados é apresentado pelas duas exposições jornalísticas ocorridas na década de 1950, já citadas: a primeira, intitulada “Lespossédées de Bahia” (As possuídas da Bahia), publicada pela revista francesa Paris Match, escrita pelo francês Georges Clouzout e marcada por grande sensacionalismo; a segunda, publicada em contra-ataque à primeira, intitulada “As noivas dos deuses sanguinários”, da revista O Cruzeiro, periódico que gozava de grande prestígio na sociedade brasileira. A primeira publicação gerou grande polêmica e motivou diversas manifestações de intelectuais em repúdio ao sensacionalismo do autor. Édison Carneiro, um dos principais especialistas em religiões afro-brasileiras da época, o acusava de não divulgar nenhuma informação de relevância científica. Odorico Tavares, cuja carta (“Resposta da Bahia a Clouzout”) encontrada nos arquivos de Pierre Verger e nunca publicada, dizia não haver voz divergente: “todos lamentam a sua maneira de apresentar um problema de interesse étnico, sociológico e, portanto humano” (TACCA, 2009). As atenções começam a se voltarpara os segredos dos candomblés. Tacca (ibidem) diz não ter encontrado nenhuma manifestação, contra ou a favor, sobre a reportagem de O Cruzeiro: “Um silêncio sepulcral abateu-se nos jornais e revistas. Esperávamos, depois da fúria incontida contra o estrangeiro usurpador de nossa cultura, que os mesmos jornalistas e intelectuais se manifestassem como fizeram com Clouzout” (ibidem).Explica-o com o fato de ser Medeirosuma pessoa amável e amiga de todos. Roger Bastide, no entanto, publicou na revista Anhembi um artigo intitulado “Uma reportagem infeliz”.[11] Aludindo à existência de uma “moralidade jornalística”, Bastide coloca a reportagem de O Cruzeiro como um “crime” da mesma ordem da de Paris Match. Dizia conhecer Medeiros e o achar encantador; afirmava que ele não teria consciência das consequências da reportagem. Inocentar Medeiros alegando ingenuidade permitiu a Bastide encontrar outros culpados. Diz ele: “não estou, pois, atacando Medeiros pessoalmente, mas a mentalidade jornalística que se criou a nossa época” (BASTIDE 1951, apud TACCA, 2009).

Segundo Tacca, a fotografia é vista por Bastide como mera ilustração de textos científicos, e mesmo as imagens de rituais de iniciação, como as feitas por Clouzout e Medeiros, “’nem sempre seriam condenáveis’, desde que fossem meramente ilustrativas de texto com cunho acadêmico e científico e com circulação restrita para um público ‘culto’” (TACCA, 2009). Ao restringir a circulação de imagens do sagrado para um público considerado culto, encontra-se o argumento para localizar a profanação do sagrado pelas fotografias quando de sua circulação nos meios de comunicação de massa – fora do contexto científico, autorizador dessas imagens. A diferença, segundo Tacca, é que o campo jornalístico não é ético com seus retratados, pois, diferentemente do pesquisador, o fotógrafo não precisa voltar constantemente para encontrar seus objetos de estudo.

Ou seja, se a comunidade religiosa não tomar conhecimento das imagens e se elas não circularem na sociedade midiática, o segredo será preservado; a caixa preta do segredo é a falta de circulação das imagens (TACCA, 2009).

Chegamos aqui a um ponto importante para minha argumentação. Bastide já naquela época justificava a publicação de conteúdos secretos em publicações de cunho científico; Tacca abordava as consequências da circulação dessas imagens. Verger, nessa época, já se encontrava atuante na Bahia e - segundo uma carta do chefe da revista O Cruzeiro, Leão Gondim, para José Medeiros - possuía fotografias tão “sensacionais ou mais sensacionais do que as do cineasta francês” (TACCA, 2009), mas se recusou a publicá-las.

Temos, portanto, ainda na década de 1950, o ponto de partida para as discussões sobre o segredo:eleé assumido enquanto preocupação antropológica a partir de um contexto de revelações.

Segundo o antropólogo Vagner Gonçalves da Silva (2006), a divulgação de conhecimentos começou a ser um problema para os religiosos na medida em que se tornou mais detalhada e acessível ao público em geral. As imagens eram – e ainda são – consideradas chocantes para pessoas não familiarizadas com a religião, já que esses aspectos, quando revelados fora do contexto religioso, remetem a um estigma negativo de “barbárie” e “primitivismo”. Mas, ainda segundo Silva (2006), como é difícil obter um consenso entre os religiosos sobre o que se pode ou não divulgar, as críticas acabam tendo pouco efeito.

A falta de consenso entre os terreiros sobre o que é ou não secreto é claramente encontrada em meu campo de análise. Nas falas de Pai Manoel é sempre clara sua posição de que não estaria quebrando nenhuma tradição, visto que hoje esse tipo de informação pode ser facilmente acessado em livros e na internet. As opiniõessobre essas questões variam muito entre outros babalorixás e iyalorixás.

SITUANDO MEU CAMPO INICIAL: PAI MANOEL DO XOROQUÊ E OILÊ AXÉ LEGIONIRÊ

Manoel de Lima Teixeira, 48 anos, conhecido como Pai Manoel do Xoroquê(por conta de seu orixá, Ogum Xoroquê),é o líder do Ilê Axé Legionirê. Sua vida religiosa começa aos 13 anos de idade. Era ainda uma criança quando se iniciou, escondido da família, na casa de Dona Geruza Donato Vieira, num terreiro de umbanda autodenominado de nação Congo Belga. Permaneceu ele nessa casa aproximadamente por cinco anos, quando descobriu o candomblé e seu santo bolou[12] no terreiro de Petrônio Jacinto Costa. Ele não lembra o ano exato dessa nova iniciação, mas, com base na idade com que diz ter-se iniciado na Casa de Dona Geruza, e levando em consideração a informação de que ficou aproximadamente cinco anos lá, calculo que foi por volta de 1984. Do dia ele se lembra: dois de janeiro. E conta que no mesmo dia em que seu santo bolou já ficou recolhido, só sendo liberado no dia 23 de abril. Mais de três meses de camarinha, coisa que não acontece nos dias de hoje e, se acontece, não é nada comum.

Muitas vezes ouvi Pai Manoel contar sua iniciação. Dizia que havia sido complicada, comentava do tempo que ficou recolhido e sempre fazia menção à presença de Exu em sua vida, principalmente para justificar sua personalidade difícil. Já o ouvi dizer que era filho de Exu, mas que na época não se iniciava ninguém pra este orixá. Eu nunca havia entendido bem essa relação. Conta ele que, já na época da casa de Dona Geruza acontecia algo estranho: sempre tinha sonhos em que incorporava Exu quando a mãe de santo fazia sua louvação habitual para Ogum. Daí a pouco, isso começou a acontecer de fato:ela cantava para Ogum, ele incorporava Exu. Ela, ao ser questionada, atribuía aquilo a espíritos obsessores e a cargas negativas, mas não o convencia.

A mitologia publicada não nos dá muita base para entender a relação entre esses dois orixás.Algumas lendas colocam Ogum Xoroquê como irmão de Exu; outras dizem que os dois são uma coisa só.

As explicações que ouvi de sacerdotes são variadas. Dou alguns exemplos:

1) Em tempos antigos não se fazia cabeça de ninguém para Exu,[13]de modo que fazer uma espécie de tutela (ou um acordo), para Ogum Xoroquê era a saída que alguns zeladores encontravam quando Exu se mostrava dono da cabeça de um futuro iaô no jogo de búzios.

2) Ogum Xoroquê seria um orixá perigoso e de temperamento forte. Vive na rua e nas encruzilhadas, por isso se assemelharia a Exu.

3) Os dois, Exu e Ogum, seriam uma coisa só;Xoroquê seria metade do tempo Exu e a outra metade Ogum.

Na época, continua Pai Manoel, Petrônio não soube fazer seu santo; pediu ajuda a seu próprio babalorixá, Cícero Romão de Oliveira Lopes, que tinha seu terreiro em Matriz de Camaragibe, interior de Alagoas.Foi este quem, no fim, terminou por iniciar Manoel em sua nação Angola-Ijexá. Como ele já tinha algum tempo de iniciado na casa de Dona Geruza, conta que Cícero Romão resolveu respeitar este tempo e lhe deu seus direitos de babalorixá. Sua vida de santo já começou conturbada, agitada pelas pessoas que o diziam jovem demais, aos 18 anos, para assumir as responsabilidades de um sacerdote.

Depois da morte de Cícero Romão, Manoel foi para a casa de Pai Edinho de Oyá,de nação Jeje-Mahin-Vodun-Daomé, em Recife, no bairro da Mostardinha. Pai Edinho é seu atual babalorixá.

Ao contar sua história e mencionar os nomes de seus iniciadores, Pai Manoel enfatiza que a relação com eles, inclusive o atual – que não vê há mais de cinco anos – não terminou bem. Diz isso abertamente e justifica dizendo não ser uma pessoa fácil e ter consciência disso. É também com facilidade que conta dos vários filhos de santo que saíram de sua casa por motivos de briga e desentendimentos.

Reunindo a bagagem que juntou nessas passagens por três sacerdotes diferentes, Pai Manoel designa seu terreiro como de nação Angola-Jeje-Mahin-Vodun-Daomé. Angola, pois foi onde seu santo foi feito, na nação de Cícero Romão; Jeje-Mahin-Vodun-Daomé, por conta de seu segundo e atual babalorixá, Edinho de Oyá. De sua estada na casa de dona Geruza, diz que não esqueceu seus caboclos.[14] Como os dois babalorixás de candomblé pelos quais passou eram também juremeiros, Pai Manoel mantém outro terreiro, em um segundo espaço situado em frente ao terreiro dos orixás, onde cultua seus mestresjuremeiros e faz algumas sessões de mesa branca.

A gente só nasce uma vez. Quando se faz o iaô, a gente nasce pro santo. Axé não se tira. Axé se apila.[15] O mais importante é quem deu o sopro da vida, o sopro inicial. É tipo assim, uma vez flamengo, sempre flamengo, minha filha (trecho de entrevista concedida em 19/06/2014).

O Ilê Axé Legionirê é um dos maiores terreiros de Maceió. É também um dos mais antigos e um dos que gozam de maior prestígio dentro e fora da cidade, pois o terreiro tem muitos filhosem outros estados. É também conhecido e comentado pelo fato de alguns artistas “globais”[16] o frequentarem. Apesar disso, Pai Manoel não é visto com frequência entre seus pares, não costuma participar de suas reuniões e seminários, nem fazer visitas de cortesia a outras casas. Manda algum representante sempre que julga necessário. Ele atribui este fato a sua personalidade forte e sua falta de papas na língua, atributos que pude comprovar com a convivência. Pai Manoel atribui essas características de sua personalidade à influência de seu santo e sempre se escuta dele com bastante veemência e orgulho: “sou filho de Exu, meu pai não tem limites!”.

Durante o processo de produção da pesquisa que resultaria em minha monografia, posso dizer que Pai Manoel “comprou o projeto”: construímos uma relação de confiança e entusiasmo mútuo, onde ele vibrava a cadaavanço meu. Ele sabia o que me estava permitindo fazer, sabia a repercussão que aquilo poderia causar e os problemas que poderia trazer para si. Mesmo assim, estava disposto a enfrentar o que viesse. Havia nele, como bom filho de Xoroquê, algo de empolgação em quebrar barreiras, romper com os tabus e ser pioneiro.

Após o término do trabalho, ainda continuei a frequentar a Casa, sempre fotografando e mantendo a amizade que havíamos construído. Os principais informantes que eu havia conquistado eram o colega por intermédio de quem eu havia chegado ao terreiro; e uma jovem ekéde[17] da Casa, que já tinha mais de vinte anos de iniciada e com a qual estabeleci um laço de amizade além-terreiro que dura até hoje. O colega era um abiã[18]e se iniciou ainda no começo da pesquisa. A amizade com os dois me fazia presenciar vários momentos de debate despretensiosos, a maioria em momentos de lazer - situações estas que me foram proveitosas. Os dois experimentavam momentos bem distintos: ela crescera dentro da hierarquia do terreiro e era figura importante lá; ele estava prestes a se iniciar. Ela carregava já algumas críticas e frustrações, ele estava numa fase de deslumbramento e paixão pela religião. Em muitas situações eu podia perceber claramente esses parâmetros opostos no discurso dos dois, o que a opinião de um causava no outro e vice-versa. Ela, depois de alguns meses, decidiu se afastar e, atualmente, parece ter cortado seus vínculos com a Casa.

Eu pretendia amadurecer um projeto para aprofundar a pesquisa com o material que havia colhido durante aquele tempo de, então, quase dois anos. Senti que precisava de certo afastamento. Eu estava começando a ser reconhecida em outras casas e eventos religiosos como sendo “da Casa do Manoel do Xoroquê” e me causava desconforto ter que explicar que eu era apenas uma pesquisadora. Essa associação começava a me prejudicar no acesso a outras Casas, pois não é visto com bons olhos alguém ligado à determinado terreirobuscar inserir-se em outro – principalmente com uma câmera fotográfica enorme sempre a tiracolo. Isso acontece devido às relações de rixas, competições e políticas-partidárias de terreiro para terreiro. Optei por diminuir o ritmo com o qual visitava o terreiro de Pai Manoel e passei a pensá-la de uma posição mais distante. Somando-se isto ao início de um curso de pós-graduação com aulas aos sábados– os sábados eram os dias em que geralmente as festas públicas aconteciam – e à falta de incentivo de minha maior companhia(que havia se desvinculado da Casa) fui levada a um afastamento real do terreiro. Concluí que esta é uma atitude necessária quando se busca uma análise a mais desapaixonada possível.

Pouco mais de um ano depois, voltei ao terreiro para uma entrevista com Pai Manoel. Dentre vários assuntos que precisava tratar com ele, voltava a pedir sua permissão.Desta vez para inscrever as fotos num evento com possibilidade de exposição em um ambiente estritamente acadêmico e em outra cidade, mas de larga escala.[19] Propus que escolhêssemos dez fotos que comporiam a exposição. Ao telefone, ele me disse que precisaria jogar os búzios novamente. Quando cheguei, ele logoperguntou quais fotos nós escolheríamos: mais uma vez havia sido autorizada. Abri as fotos no tablet e ele foi apontando as que poderiam ser introduzidas e quais ele preferia excluir. Preferiu excluir as mais fortes, onde apareciam os bichos sendo sacrificados e também aquelas em que ele aparecia em destaque – o mesmo fez com as que destacavam outras pessoas da Casa.

Encontrei um Pai Manoel bastante mudado: havia se iniciado no Culto à Ifá, estava bastante empolgado com os novos aprendizados e trazido três novos projetos para o terreiro. Dois deles são criações da própria comunidade do Ilê Axé Legionirê:o AfoxéPovo deExu; e o Projeto Alegria deYáyá, um evento em homenagem às antigas iyalorixásda cidade. O terceiro é um projeto de alguns realizadores culturais e Pai Manoel acolheu em sua Casa, o Projeto Batuquerê,responsável por dar aulas de percussão para crianças de terreiro. Estes novos elementos serão melhor abordados em um trabalho mais profundo, jáem desenvolvimento. O que é importante frisar aqui, é que Pai Manoel, embora enfatize ainda não gostar de ir a congressos e seminários, agora está disposto a abrir sua Casa para seus pares em determinados eventos e de se envolver com o meio das apresentações culturais com seu afoxé.

Conversamos sobre o tempo em que fiquei afastada do terreiro e de suas impressões sobre a repercussão de meu trabalho. Como previ, muito havia se falado na cidade, mas, segundo ele, as coisas chegavam a seu ouvido por terceiros e nunca participou de nenhum confronto pessoalmente. Também voltamos a falar sobre o episódio polêmico que já descrevi. Pai Manoel é enérgico ao atribuir à mentalidade provinciana de Alagoas todo o burburinho maldoso que se desenrolou: “a poeira não vai baixar se não subir”. Segundo ele, “é tudo poeira de 1912”.[20] Reitera seu discurso de que não infringiu nenhuma lei religiosa ao permitir o registro de um ritual de iniciação em seu terreiro, já que há meio século esses conteúdos vêm sendo revelados e sendo disponibilizados em livros e na internet.

“Estou aqui pra ensinar, não sou sacerdote? Eu sei e vou dizer que não sei? Falei o que eu sei.Se não era pra falar, pra quê me ensinaram? Dediquei a minha vida ao candomblé, se aprendi foi porque alguém me ensinou. Então eu tenho que passar meu conhecimento. Tudo o que falam entra por um ouvido e sai pelo outro: não faço nada escondido de ninguém. Eu sou movido pela força dos orixás, então se o orixá autorizou, eu não estou preocupado. Você não tirou nada da sua cabeça, fez um estudo sério e demorado, se lhe rendeu e ainda está lhe rendendo coisas boas, é tudo ajuda dos orixás. Eles têm força. Se existe a quantidade de livros que existe, é porque se dispuseram a ensinar” (trecho de entrevista realizada em 10/03/2014)

“A POEIRA DE 1912” – HISTÓRICO DE REPRESSÃO E PERSEGUIÇÃO

Já apontei que a comunidade religiosa de matriz africana de Alagoas carrega uma pesada bagagem histórica que, de certo modo, justifica a constituição de seu pensamento atual em relação aos tabus que contemplam o segredo ritual e as formas de resistência e preservação da religião.

Embora pouco se saiba, Alagoas é um terreno fértil para os estudos das religiões de matriz africana. “No início do século XX, a população em Maceió era de aproximadamente 30 mil habitantes e estima-se que existiam na capital, em média, 50 terreiros. Hoje, calcula-se que existe mais de dois mil xangôs espalhados pela capital e pelo estado” (AMORIM, 2007).Este número certamente cresceu, mas ainda não temos um mapeamento preciso. Em questão de antiguidade, segundo Cavalcanti e Rogério (2008), a vida religiosa afro-alagoana ainda é pouco conhecida pelos pesquisadores, e o que se sabe provavelmente está desatualizado, embora “se trate de uma realidade que reclama por ser compreendida em suas características históricas, sociais e simbólicas” (CAVALCANTI E ROGÉRIO, 2008).

Esse esquecimento da memória negro-alagoana pode ser explicadopor diversos fatores. O mais importante deles, ainda segundo Cavalcanti e Rogério (2008), foi “essa espécie de trauma social advindo dos terríveis acontecimentos de fevereiro de 1912... [coisa] que dificultou a afirmação afro-religiosa na cidade por décadas”.

Segundo relata Ulisses Neves Rafael (2012), na noite do dia 1º de fevereiro de 1912, as ruas de Maceió foram palco de um dos episódios mais violentos de que foram vítimas as casas de culto afro-alagoanas. O acontecimento ficou conhecido como Quebra-quebra, e culminou na invasão e destruição dos principais terreiros de xangô da capital do estado. Era uma quinta-feira e, naquele ano, a cidade se encontrava às vésperas do carnaval e do dia de Oxum, a orixá rainha das águas doces.O bairro da Levada assistia a uma movimentação maior do que a usual, já que o terreiro de Chico Foguinho, um dos mais afamados pais de santo da cidade, havia se mudado para lá e se encontrava em plenos preparativos para a grande festa de Oxum. Chico, assim como toda a comunidade de santo da época, gozava de proteção do então governador, Euclides Malta, que mantinha estreita relação com os xangôs. Chico havia conseguido arrastar o governador para a festa de inauguração de sua nova Casa, ocasião em que a autoridade recebeu a aclamação de “representante máximo na terra do deus Leba e, portanto, o Papa do Xangô Alagoano” (RAFAEL, 2012).

Há dois anos havia sido criada sob a liderança de Manoel Luiz da Paz, a Liga dos Republicanos Combatentes - misto de guarda civil e milícia particular - com a finalidade de fornecer suporte físico à campanha contra o governador Euclides Malta, que jáestava no poder há doze anos. Acontece que, nesse momento, o “Papa do Xangô Alagoano” se encontrava afastado de suas funções governamentais e a situação era tensa. O grupo reunido na sede da Liga transfigurou o que seria um ensaio carnavalesco em gritos de “Quebra!” e fizeram “os cabras da Liga, que a essa altura não deviam obediência a nenhuma autoridade, nem terrestre, nem mágica, caírem com toda sua fúria sobre os terreiros” (RAFAEL, 2012).

Ainda segundo Rafael (2012), o primeiro terreiro a ser atingido, pela proximidade em que se encontrava, foi o terreiro de Chico Foguinho. Os seguidores foram surpreendidos no auge do culto, alguns deles ainda com o santo na cabeça. A multidão enfurecida adentrou quebrando tudo que via pela frente e batendo nos filhos de santo que se demoravam na fuga. Muitos objetos sagrados foram retirados dos locais e lançados no meio da rua, onde se preparava uma grande fogueira. Alguns objetos foram conservados para serem expostos na sede da Liga e outros eram exibidos em tom de zombaria no cortejo que se armou em direção a outras Casas de xangô nas proximidades.

Tia Marcelina, uma velha negra africana indicada como fundadora do candomblé em Alagoas, ficou conhecida como mártir desse que hoje é um evento frequentemente lembrado pelo povo de santo e pelos intelectuais alagoanos. Era dona de um dos terreiros mais antigos da cidade e, segundo se dizia, o mais frequentado pelo governador. Já era madrugada, a função de Tia Marcelina havia terminado e alguns poucos filhos de santo permaneciam no local. A “procissão errante, que agora se compunha de quase quinhentas pessoas invadiu o recinto, transformando aquilo num verdadeiro carnaval, formato que certas revoltas populares assumem em alguns eventos históricos” (RAFAEL, 2012). Praticaram toda a sorte de violência física contra os filhos de santo que insistiram em ficar. Rafael (2012) narra que Tia Marcelina resistiu ao ataque e permaneceu no lugar, sendo a mais prejudicada.

[Tia Marcelina] veio a falecer dias depois em função de um golpe de sabre na cabeça aplicado por um daqueles praças da guarnição que dias antes haviam desertado no Batalhão Policial. Contam que a cada chute recebido de um dos invasores, tia Marcelina gemia para Xangô (eiô cabecinha) a sua vingança e, no outro dia, a perna do agressor foi secando, até que ele mesmo secou todo[21] (RAFAEL, 2012).

A Operação Xangô – que, por conta do verdadeiro quebra-quebra em que se transformou, ficou conhecida como “O Quebra de Xangô” – fez com que não mais se ouvissem atabaques pela cidade. A maioria dos babas e iyás[22]foi buscar refúgio em outros estados. Os que ficaram continuaram a desenvolver suas práticas religiosas, pois temiam muito mais as possíveis punições de seus orixás do que as das autoridades.Isso resultou na humilhante modalidade denominada “Xangô rezado baixo”. Sem rodas de dança, sem uso de tambores e atabaques. Os sacrifícios eram feitos tão discretamente quanto uma doméstica prepara uma galinha ao molho pardo.

Restaram as orações sussurradas, acompanhadas de palmas discretas, como se tanto crentes como orixás tivessem vergonha de ainda precisarem se cruzar em situação tão vexatória. (RAFAEL, 2012).

Após a diáspora, somente por volta de 1951 os cultos de matriz africana reaparecem em matérias jornalísticas na imprensa local. “Muito provavelmente já nos encontrávamos diante de um franco processo de transfiguração para as formas mais sincréticas de culto” (CAVALCANTI E ROGÉRIO, 2008).

Em 2012, na data em que se comemorou o centenário do massacre do Quebra, o governador Teotônio Vilela Filho assinou um pedido oficial de perdão do Governo do Estado a toda a comunidade de terreiros de Alagoas pelas atrocidades sofridas à época. Os documentos foram assinados num evento intitulado “Xangô Rezado Alto”.O acontecimento contou com grande cortejo popular pelas ruas do centro da cidade, com apresentações artísticas de grupos ligados aos terreiros locais e atrações nacionais. Em seu discurso, o governador ressaltou a memória coletiva:

“Naquele tempo uma onda de violência sem precedentes se abateu sobre os terreiros em Maceió e sobre as pessoas que então praticavam os ritos de origem africana – o Estado não cumpriu, naquele momento, seu papel de assegurador dos direitos elementares do cidadão, nem na garantia do direito à liberdade religiosa. [...]A primeira vítima nesta noite terrível foi Tia Marcelina, reverenciada como a principal Mãe de Santo de Alagoas daquela época. Tia Marcelina, idosa com mais de oitenta anos, morreu vítima de um golpe de sabre em sua cabeça e chutes desferidos por um ex-soldado, desertor da força pública. Conta-se que no dia seguinte a perna do referido soldado secara e, depois, todo o corpo.Em verdade, frente a esses episódios horrorosos, o que secou mesmo foi nossa memória e, junto com ela, nossa própria identidade perdeu parte de seu brilho. (trecho do discurso do governador Teotônio Vilela Filho,[23]Maceió, 12/02/12)

Assumiu-se que o terrível acontecido resultou em um inquestionável prejuízo ao progresso do estado enquanto sociedade e como um todo. Ogesto do governo contribui, ainda que minimamente, para que as religiões de matriz africana, por tanto tempo marginalizadas e silenciadas, possam encher-se de coragem para mostrar-se dignamente. O caminho ainda é longo e a coragem ainda tímida diante de séculos de repressão.

O antropólogo Bruno Cesar Cavalcanti, em um documentário comemorativo[24] do centenário do Quebra de Xangô, ressalta a importância do gesto para as lideranças religiosas, mas enfatiza, que, pessoalmente, não o super-dimensionaria: “quem pediu perdão não foram os algozes de 1912, quem pediu perdão foi um governo de hoje, um século após” (2012). Jápara a antropóloga Rachel Rocha, existe uma importância neste pedido de perdão.Segundo ela, o perdão público reforçou a necessidade de uma atenção maior às comunidades religiosas afro-brasileiras, uma vez que o chefe máximo do estado assinou um decreto reconhecendo as mazelas e consequências do ato de cem anos atrás. Esse evento, ainda segundo Rachel, reforçou a necessidade do desenvolvimento de políticas públicas que olhem de uma forma especial para estas populações que ficaram excluídas de todas as políticas.

O medo da repressão, da violência e do silenciamento sempre rondou o povo de santo. Por isso, o desenvolvimento das religiões de matriz africana no Brasil foi marcado por essa aura secreta e por uma tendência à camuflagem. Esse medo é notado, inclusive, na dificuldade de detectar a real presença dessas religiões no Brasil. Reginaldo Prandi[25] (2012), indica que o Censo “sempre ofereceu números subestimados dos seguidores das religiões afro-brasileiras, o que se deve às circunstâncias históricas nas quais essas religiões se constituíram no Brasil e a seu caráter sincrético daí decorrente”. Em Alagoas, o trauma foi resultado de fatos concretos, de um acontecimento aterrorizante e sangrento. A barreira dos segredos guardados, com o passar dos tempos, tornou-se negociável, mas ainda presente no universo religioso de matriz africana.

“REVELAR OU CALAR A BOCA” - A QUESTÃO ÉTICA NO TRATO COM O SEGREDO DO OUTRO

Segundo o sociólogo GeorgSimmel (2011), “aquilo que é intencional ou não-intencionalmente ocultado é intencional ou não-intencionalmente respeitado” e a intencionalidade da ocultação assume uma intensidade maior no embate com a revelação.

“[...] o segredo contém a consciência de que pode ser rompido: de que alguém detém o poder das surpresas, das mudanças de destino, da alegria, da destruição – e até da autodestruição. Por tal razão, o segredo está sempre envolvido na possibilidade da traição (SIMMEL, 2011).”

Ainda segundo Simmel, é neste momento de vulnerabilidade que está o ponto alto da evolução do segredo, ondese concentram e culminam todos os seus atrativos. Para ele, a propriedade do sigilo muitas vezes adquire valor especial pela consciência de que outros não a detêm. A exclusão dos que não o detém traz um sentimento de posse que situa a pessoa numa posição de exceção, ou seja: uma pessoa se torna notável por aquilo que esconde.

Ainda segundo Simmel, é compreensível o uso do segredo como técnica sociológica, como uma forma de ação sem a qual certos objetivos não poderiam ser atingidos. Assim, o atrativo e o valor do segredo estariam em sua própria significação como simples meio, não importando o seu conteúdo momentâneo.

Paul C. Johnson éum antropólogo americano que pesquisou a temática do segredo em um terreiro de candomblé no Rio de Janeiro no período entre 1991 e 1995. Nessa ocasião, ele passou pelos ritos iniciáticos nos moldes do que o próprio chama de uma abreviada gringo version, ou seja, uma versão gringa da iniciação, adaptada para o pouco tempo que dispunha no Brasil. Johnson (2002) coloca o poder do segredo como garantido pela sociedade que não tem acesso a um determinado conhecimento e faz dele a moeda de troca que mede o valor de um terreiro.

Johnson usa o termo “segredismo” para expressar uma ideia de promoção da reputação do segredo. Para ele, “o segredo ritual não tem conteúdo, é um recipiente, um container, um vazo vazio, como um biquíni que mostra a forma, mas não deixa ver o principal” (JOHNSON, 2002). A sabedoria toma forma sem revelar no que consiste, numa reivindicação de poder e prestígio que atrairia clientes e filhos espirituais para os sacerdotes do candomblé.

Ainda segundo o mesmo autor,a sabedoria que constitui os fundamentos do candomblé manteve-se em segredo durante a escravidão e continuou depois da abolição, até o Segundo Congresso Afro-Brasileiro, em 1937. Para ele, até esse momento, realmente existiam segredos religiosos no candomblé, mas a partir daí, com o crescimento da participação de intelectuais, esses segredos foram sendo revelados, muito influenciados pela academia, “com sua curiosidade mórbida por segredos ainda não revelados” e “antiética por natureza”(JOHNSON, 2002) em relação à manutenção de segredos rituais. Agora, escreve Johnson, não existem mais segredos.

Em contrapartida, o antropólogo José Jorge de Carvalho (1985) afirma que, quase sem exceção, todos os estudiosos dos cultos afro-brasileiros tradicionais já se depararam – e ainda se deparam – com a barreira do segredo, daquilo que não se penetra sem iniciação ou sem um longo período de intimidade e de confiança mútua com o grupo estudado. Segundo ele, apesar de as relações não serem hoje tão fechadas e ortodoxas como há meio século, a força do segredo ainda existe: “osegredo dá força à pessoa” (CARVALHO, 1985).

Ainda segundo Carvalho, a cada vez que uma informação factual ou um detalhe do ritual é revelado ou a participação do pesquisador em algum evento é permitida, uma parte do sistema inteiro do culto é posta a prova, pois fica aberto à discrição do estudioso o que revelar em seus escritos.

Ao narrar o caso do trabalho de um antropólogo que desvendou segredos importantes de uma comunidade surinamesa, Carvalho diz ter-se estarrecido com a magnitude do sigilo, guardado durante duzentos e cinquenta anos. Questiona, então, a atitude do autor ao publicá-los e argumenta que à antropologia o que interessa é compreender a importância do segredo dianteda história dos grupos pesquisados e não a mera espionagem de seu código cultural mais reservado. Carvalho (1985) confessa que se maravilhou com o mundo dos xangôs de Recife e se autocritica por ter-se visto impulsionado a desvendar certos segredos. Todavia, pensa ele que não deve revelar tudo que observou numa publicação que chegue indiscriminadamente às mãos de qualquer um.

Nosso cuidado, como antropólogos, ao entrarmos em contato com o que Carvalhochama de “um mundo alternativo de formas simbólicas”, deve ser o de preservação da sensibilidadepara que não se interfira, nem se provoquea sua desintegração ou desencantamento. A advertência do autor é para que, nós, antropólogos, procuremos diminuir a cada dia mais a distância humana, tão comum no período colonialista da disciplina e que levava à produção de obras para um círculo fechado de acadêmicos, deixando os informantes num mundo separado.

“Hoje, interessa-nos recuperar, de algum modo, o elo entre esses dois mundos e a busca de um consenso entre o interesse acadêmico e o do grupo estudado é fundamental no momento em que tenhamos que optar por escrever ou calar a boca” (CARVALHO, 1985).

A questão ética é recorrente nesse universo e vê-se também tratada por Vagner Gonçalves da Silva (2006).Segundo ele, a questão do segredo nas religiões afro-brasileiras faz com que o antropólogo tenha de se posicionar de forma diferente diante dos registros obtidos. Seu argumento é de que o segredo nessas religiões “é menos uma questão de ‘conteúdo’ de informações específicas e mais de controle de acesso dos religiosos aos fragmentos dos conhecimentos litúrgicos com os quais se pode sistematizar o corpus religioso de uma forma mais legítima” (SILVA, 2006). Contudo, ele argumenta que o segredo opera como uma estrutura de significação variável em meio às relações de poder e concorrência existentes entre os religiosos. “Por isso, o conhecimento nessas religiões enfatiza sobretudo os contextos performáticos da fala: quem fala, para que se fala, o que, quando e onde se fala” (SILVA, 2006).

Ainda segundo Silva, o contato do antropólogo com os segredos da religião envolve políticas de negociação. A exposição desses segredos dependerá do papel que lhes atribui o antropólogo na organização da narrativa etnográfica, à qual os religiosos nem sempre tem acesso.Para muitos sacerdotes, as etnografias podem representar um problema ao desenvolvimento dos modelos tradicionais de reprodução do saber religioso, porque “colocam a prova as relações hierárquicas existentes na comunidade religiosa articuladas em função da relação saber-poder” (SILVA, 2006).

Diante de tudo isso, penso que poderemos estar lidando com um fenômeno de reinvenção do segredo. O teor do segredo é variável de terreiro para terreiro, de sacerdote para sacerdote, de região para região, e assim por diante.Além disso, a ideia de segredo foi adaptada e ressignificada com o passar dos anos e o advento do interesse da academia pelas vicissitudes das religiões dos orixás.

O antropólogo Thiago Bianchetti, também pesquisador das religiões afro-alagoanas, a partir de sua experiência no campo afirma o caráter político das negociações tecidas na relação entre o pesquisador e os pesquisados, enfatizando o fator chave que é a confiança construída entre eles. Seu tema de pesquisa, como o meu, também é delicado: Bianchetti analisou os Exus no contexto afro-brasileiro e nas “sessões de descarrego” da Igreja Universal do Reino de Deus, etnografando o trânsito simbólico dessas entidades que se manifestam sincreticamente em ambos os domínios.[26]

Em entrevista, o citado antropólogo me explicou que era de seu interesse sair do eixo das casas tradicionais da cidade, justamente por considerar seu tema “tão indigesto quanto o segredo”. O Palácio deIemanjá, localizado no bairro periférico do Jacintinho, em Maceió e a sede da IURD estudados por ele situavam-se na mesma rua, a uma distância aproximada de 50 metros uma da outra. Ele começou a pesquisa de campo pela Igreja e identificou que o início da tensão se deu quando ele passou a frequentar os dois centros. Essa tensão foi o que o fez dar-se conta de que ele próprio também possuía uma identidade em trânsito simbólico.

“Eu tive dois momentos interessantes: na Universal a minha personalidade vai caindo, decrescendo; e na Umbanda de seu Zeca, a minha personalidade, enquanto amigo, vai crescendo. Eu era ‘o menino da universidade’ e no final da pesquisa passei a ter nome. Na Universal eu era ‘o menino da universidade’ e depois fui sendo esquecido, nem meu nome sabiam mais.” (Trecho de entrevista concedida em 14/03/2014)

É perceptível a diferença da significação que se dá a um agente “de fora”, neste caso, o pesquisador que adentra determinado universo. Enquanto, no terreiro, ele vai criando vínculos de amizade e confiança, mesmo não sendo um religioso e deixando claro sua posição, na IURD, quando se recusa a adotar a visão de mundo pregada pela Igreja,começa a ser indesejado. As religiões de matriz africana permitem a aproximação de pessoas interessadas e as agrega numa relação fraterna, na medida em que se passa a confiar nelas. Enquanto para os adeptos das religiões afro-brasileiras o segredo traz prestígio, para os evangélicos da IURD, tudo teria de estar às claras; ou seja, na IURD o segredo é agente do mal.

“Teve uma hora em que as pessoas me olhavam meio com pena, meio impacientes. Eu sempre notava que o sentido maior era me ver liberto daquele mal e de todas as atribuições que esse mal traria sob minha vida. Isso, de certa forma, me constrangia, porque eu sabia que não ia poder cooperar com eles. [...] Acho que no final eu era o próprio exu, que eles estavam tentando eliminar. Não de toda forma, porque eles se valem muito disso, da existência deles, mas de eliminar essa coisa de ter o segredo. Mas alí o segredo tinha outra característica.”(Trecho de entrevista concedida em 14/03/2014)

Na fala de Bianchetti há um elemento importante para minha discussão: o segredo enquanto associado ao mal. Deixados finalmente em paz pela polícia depois de décadas de perseguição, os religiosos afro-brasileiros ganharam inimigos muito mais agressivos e fanáticos: os pentecostais. É praticamente impossível desassociar o papel das religiões neopentecostais no âmbito das práticas repressoras e intolerantes direcionadas às religiões de matriz africana, que eles consideram manifestações do demônio.

Diante do fato de que, hoje, o neopentecostalismo tem nas religiões afro-brasileiras seu maior alvo de ataque, e, levando em consideração sua enorme quantidade de adeptos e vertentes, é de se esperar que este seja um dos grandes motivos do cuidado excessivo por parte das religiões africanas com a divulgação de suas práticas.

Segundo Thiago Bianchetti, a Umbanda é caracterizada por abrir os segredos e ter sua aura secreta mais negociáveldo que no Candomblé. A Umbanda, ainda segundo ele, seguiria um percurso onde se assume a existência de segredos e mostra-se sua superfície, embora sem aprofundamento. Algo que pode ser associado ou explicado com o que Johnson (2002) chamou “thesecretism (o segredismo), um conceito que ele define assim:

Como não meramente uma reputação, mas um trabalho ativo de polimento e promoção da reputação dos segredos. Segredismo é livremente e generosamente compartilhado. O segredismo não diminui o prestígio de um sinal por revela-lo, mas sim o aumenta através da circulação promíscua de sua reputação; é a longa sombra que sugere uma grande massa atrás. É através do segredismo, a circulação de inacessibilidade de um segredo, as palavras e ações que lançam essa ausência em relevo, que o poder de um segredo cresce, de forma totalmente independente da sua existência ou não existência. (JOHNSON, 2002).[27]

Bianchetti conta, por exemplo, que nunca teve acesso às ervas do banho de Exu no Palácio de Iemanjá: “foi-me dado o banho, mas não a receita e não pude ir para a coleta das folhas na mata”[28], mesmo já estando familiarizado com os integrantes do terreiro e tendo tido acesso a outros rituais também considerados secretos, como ocasiões de sacrifício de bichos. Dessa coleta era incumbido um senhor cujo cargo era denominado “pai pequeno de Exu[29]e muitas figuras emblemáticas da Casa não podiam participar. É um segredo conhecido por toda comunidade, ou seja, todos sabem que está presente na ritualística da Casa, sabem quando acontece e, de forma pré-definida, como acontece, mas nem todos são conhecedores de seu axé: quais são as espécies de folhas colhidas, que cantos são entoados, que palavras e rezas são proferidas no preparo, e suas especificidades.

As concessões abertas para determinadas pessoas “de fora” são mediações que, segundo Bianchetti, acontecem “no corpo a corpo, no dia-a-dia”, permissões conquistadas política e gradativamente. Ao longo de seu trabalho, Bianchetti fez uso da fotografia como entrada metodológica e somente no terreiro, já que na IURD era expressamente proibido qualquer tipo de registro.

Tinham figuras que, terminando o ritual, vinham perguntar se eu podia mandar as fotos, outros vinham com recomendações do tipo ‘não coloque no facebook’, coisa que nem passava pela minha cabeça, mas que eram interessantes para ver como são esses estímulos, de como as pessoas estavam posicionando suas preocupações. Outras pediam para que se tirasse uma foto bonita de sua pomba-gira, ou que não pegasse determinado ângulo... Então através das fotos eu pude conversar com as pessoas.Funcionava como um aporte, mas claro que, em alguns momentos essenciais, principalmente nos momentos de sacrifício, o segredo era mantido e a fotografia não era permitida. (Trecho de entrevista concedida em 14/03/2014).

A antropóloga Fernanda Rechenberg (2012), em sua pesquisa, aborda uma polêmica relacionada à divulgação de um álbum de fotos em uma rede social. O álbum foi compartilhado por uma liderança religiosa que tornava pública sua indignação diante de tais imagens. Continha mais de 300 fotos de cultos afro-brasileiros, sempre polêmicas pela conhecida interdição por parte dos religiosos, algumas com forte conotação sexual, outras que sugeriam violência e periculosidade nos cultos. Segundo Rechenberg, a diversidade das fotografias reunidas nesse álbum mostrava uma ambiguidade que dificultava a interpretação de um olhar que buscava dar ênfase aos aspectos mais “impuros” dos cultos. Todas as fotografias eram de fotógrafos amadores e mostravam um olhar “de dentro”, “que dialogava com os sujeitos e obtinha deles um consentimento” (RECHENBERG, 2012).

Rechenberg ainda chama atenção para o fato de a preocupação com a livre circulação desse tipo de imagens não ser um consenso entre os religiosos. A autora percebeu que a fotografia figurava como uma peça a mais em um jogo de mostrar e ocultar que revela os dissensos no corpo da matriz religiosa. Esses casos mostram a complexidade de se debater os usos de imagens nas religiões de matriz africana no mundo contemporâneo, “partindo de uma dicotomia fotógrafo – detentor da imagem, e religioso – detentor do saber da tradição” (RECHENBERG, 2012).

OS ESCOLHIDOS DOS ORIXÁS

Pai Manoel do Xoroquê, em entrevista, enquanto conversávamos sobre a repercussão de meu trabalho feito em seu terreiro, criticou a grande importância dada ao caráter secreto do ritual de Feitura de Santoem particular, alegando que o fundamento de sua casa é bem mais amplo do que apenas este ritual. Este é um ponto de vista recorrente sobre esta questão, compartilhado por alguns líderes com os quais pude conversar a respeito. Numa conversa informal, quando questionei sua opinião sobre divulgações de fotografias contendo cenas consideradas secretas, Dona Lila, uma antiga iyalorixá, me disse:

“Ah, mas ninguém descobre! Pode tirar a foto que for, estudam, estudam... mas a ciência divina ninguém descobre. Pelo menos é assim: você não tá vendo alí, aquele retrato? [apontando para um porta-retratos num móvel próximo] De mim, da criança... A gente estava na igreja, então a gente ia batizar a criança. Então aquilo alí é um batizado. Bem assimsão essas fotos que aparecem: justamente está dando a prova de aquilo foi feito assim e assado.” (Depoimento recolhido em 14/03/2014)

Dona Lila é uma senhora de quase 80 anos, iyalorixá com mais de quarenta anos de santo.[30] Sua vida religiosa é um pouco diferente do usual.Ao contrário do que normalmente acontece nesses casos, depois que seu pai de santo faleceu, ela não procurou outro terreiro para se filiar. Optou por cuidar de suas coisas em sua própria casa. Justifica sua decisão afirmando não gostar do universo social dos candomblés, da movimentação e das relações conflituosas. Embora não “bata” mais candomblé,recebe muitas pessoas em sua casa para “rezas de ramo”, curas e tratamentos espirituais e “reuniões de mesa branca” ou “rituais de caboclo”[31], que acontecem semanalmente num salão construído na parte de trás de sua casa. Uma vez por mês canta para seus orixás: reúne seus filhos de santo e cantam, sem uso de atabaques; há incorporações, os orixás dançam, distribuem bênçãos entre os presentes e oferendas são feitas. Dona Lila também é muito católica e frequenta regularmente a igreja de seu bairro.

Vê-se aqui, no discurso dela, outro significado comumente dado a este tipo de registro fotográfico: um “deslocamento contextual” que, segundo Tacca (2009) “encontra a gênese da fotografia como realidades múltiplas, permitindo, dessa forma, significações diferenciadas, sagradas ou profanas”. Fernando de Tacca (ibidem), em sua pesquisa sobre a trajetória de Medeiros, se deparou com algo inusitado: a sobrinha de uma das iaôs fotografadas na reportagem de O Cruzeirorecortou as fotos da revista em que a tia aparecia e as colou num álbum afetuoso, nomeado “Lembrança de minha Epilação”, ressignificando as imagens para o âmbito familiar.

Sobre as permissões consentidas às exceções - pessoas escolhidas pelos orixás ou entidades – as opiniões também se assemelham, sendo trazido pelos religiosos o pressuposto teológico de que as entidades simplesmente sabem o que se passa dentro de cada um, ou seja, se suas intenções são boas ou não. Reproduzo aqui mais um trecho de uma conversa informal com Dona Lila:

LILA: Na camarinha você está recolhida, tem a hora de rezar prosanto, tem as pessoas de rezar pro santo: tem a mãe pequena, tem o pai pequeno, o padrinho do seu santo, a madrinha do seu santo. Essas pessoas fazem parte daquele ritual, da obrigação. Agora os outros, não.
EU: Por exemplo, se eu chegar a um terreiro e quiser fotografar uma camarinha, não vou poder.
LILA: Depende, porque se o zelador ou a zeladora consentir, você entra.
EU: E por que é que às vezes ele consente pra um e pra outro não?
LILA: Depende da pessoa. O pior de tudo é isso. Nem todo mundo é certo. Ninguém tá sabendo se aquela pessoa que tá filmando aquela iaô que tá alí, se tem um coração bom, se é pra estudar ou pra prejudicar. A foto não tem problema. Depende das pessoas que vão ficar com as fotos, do que vão fazer e do que o povo vai falar depois... (Depoimento recolhido em 14/03/2014)

Alguns casos de consequências vividas por pessoas que burlaram as regras e registraram momentos considerados secretos sem permissão são relatados por religiosos e pesquisadores. No caso dos pesquisadores, é possível “observar a compreensão e o compartilhar de alguns valores do sistema religioso” (SILVA, 2006). O antropólogo Roberto Motta, em depoimento a Silva, conta que:

“numa obrigação de Balé que Manuel [pai-de-santo] não me deixou olhar, eu abri a porta e tirei um retrato. E quatro meses depois eu tive um diagnóstico de um problema na vista tão sério que eu fiquei achando que era castigo. Até hoje eu acho que foi castigo” (ibidem).

Em uma entrevista, a iyalorixáMãe Neide Oyá D’Oxumme contou que seu erê[32] não gosta de ser fotografado. Na ocasião de uma festa, um filho da casa o estava fotografando, quando ele [o erê] pediu que parasse. O rapaz continuou fotografando sem que ele visse.Depois, inexplicavelmente, terminou perdendo todas as fotos, façanha que a iyalorixá atribui à entidade.

Mãe Neide, 52 anos e aproximadamente 29 de vida espiritual, é líder do Grupo União Espírita Santa Bárbara (GUESB), situado no bairro do Village Campestre II, periferia de Maceió. Sua linha é uma Umbanda “traçada com nagô”.[33]Um culto bastante sincrético, com elementos de Jurema e Catimbó.[34]

Na mesma casa, em um ritual de preparo de jurema, a bebida sagrada,[35] a mãe de santo já havia me informado de que eu poderia fotografar a festa, exceto o cercado do Boiadeiro, local onde a jurema estava enterrada[36] e onde o ritual seria concentrado.Justificou dizendo que o Boiadeiro [a entidade], era bastante sisudo e não iria gostar. Fotografei o início da festa, no salão de dança e, quando os filhos se dirigiram para o cercado - situado na parte de trás do terreiro - eu, embora pudesse assistir, parei de fotografar. Certifiquei-me com um dos ogãs de que era a partir daquele momento que eu deveria parar e ele sugeriu que eu pedisse permissão ao próprioBoiadeiro, que já estava “em terra” [incorporado na mãe de santo]. Eu, confesso, tive receio e não fui, continuei no meu lugar, um pouco afastada. De repente, escuto as pessoas de dentro do cercado gritando meu nome e fui rapidamente ver o que se passava. O ogã havia se adiantado e pedido a permissão diretamente à entidade, que, para minha surpresa, permitiu. Entrei no cercado, pedi sua benção fazendo uma reverência que foi respondida com um abraço e continuei fotografando, desta vez, tendo acesso ao assentamento[37] e aos fundamentos contidos alí. A própria Mãe Neide, quando voltou a si, ficou surpresa com a permissão doBoiadeiro.

Mãe Neide também colocou um novo elemento na discussão sobre o segredo: episódios em que pessoas disponibilizaram imagens de cultos afro-brasileiros para igrejas neopentecostais, expondo os fiéis retratados e os associando ao demônio. A jornalista Stela Guedes Caputo (2012), em sua pesquisa, aborda os diferentes sentidos que podem emergir a partir de uma mesma imagem: fotografias de crianças em terreiros da Baixada Fluminense, que fez quando era repórter fotográfica de um jornal carioca, foram vendidas pela agência do próprio jornal ao Grupo Universal do Reino de Deus e publicadas na Folha Universal[38], em matéria intitulada “Filhos do Demônio”, gerando consequências desastrosas para as crianças (CAPUTO 2012).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Procurei, neste breve artigo, usar de minha experiência para pensar as relações do segredo ritual com as técnicas e meios de registro etnográfico – e procurei fazê-lo no formato mais etnográfico possível. Iniciei uma discussão sobre a questão da ética diante da documentação de ritos considerados secretos e posicionamentos de pesquisadores diante de possíveis publicações. Para isso, entrevistei religiosos e pesquisadores.

Apresentei um panorama das discussões envolvendo o segredo das religiões de matriz africana no Brasil; ou seja, quando o segredo “deixa” de ser segredo. A partir daí, pela década de 1950, impulsionados pela veiculação de duas reportagens jornalísticas, os intelectuais da época começam a se manifestar sobre o assunto. O coro de manifestações, em uníssono, declarava a infelicidade de se apresentar um problema de interesse étnico e antropológico da maneira como se fez, a partir de uma circulação massificada.

Apresento também minhas entrevistas com Pai Manoel do Xoroquê, o ator principal deste trabalho: o babalorixá que permitiu que o registro fotoetnográfico de uma Feitura de Santo em sua casa, rompendo barreiras e tabus. Seu posicionamento seguro e sua constante reiteração da autorização que recebi motivam todo o trabalho e me dão subsídios para investir na investigação sobre a representação do segredo ritual.

A conclusão deste artigo – e a breve pesquisa de campo que o fundamentou – não deu fim aos meus questionamentos. Ao contrário, me trouxe elementos pelos quais pude dar início a um trabalho maior, já em andamento. São pistas, trazidas pelos próprios religiosos e reiteradas por pesquisadores. Posso pensa-las a partir de três eixos: em primeiro lugar, a sangrenta bagagem histórica que contribuiu para a formação do pensamento da comunidade religiosa e justificaria o caráter secreto dos cultos; segundo, os fatores intolerância religiosa, os ataques neopentecostais e a falta de consenso entre os religiosos diante do que pode ou não ser divulgado; e terceiro, os aspectos teológicos das próprias religiões que colocam os interditos na esfera do sagrado e do crivo das entidades e divindades.

O que chamei de “reinvenção do segredo” corresponde a uma formação conceitual ainda em processo de formulação. Com ela, não quero dizer que o segredo é ou foi inventado pelos religiosos no sentido de promover sua reputação ou qualquer tipo de publicidade desproporcionada. Esta ideia está muito mais relacionada à variação do teor do segredo entre as diversas vertentes religiosas e mesmo entre os diferentes terreiros.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AMORIM, Siloé (2007, 52min). 1912 –O Quebra de Xangô. Documentário premiado pelo DocTv Alagoas.

BIANCHETTI, Thiago Angelin Lemos. Entidades e rituais em trânsito simbólico: uma análise dos Exus no contexto afro-brasileiro e nas sessões de descarrego da IURD. UFPE, 2011.

CAPUTO, Stela Guedes. Educação nos terreiros: e como a escola se relaciona com crianças de candomblé. Rio de Janeiro: FAPERJ: Pallas, 2012.

CARVALHO, José Jorge. A Racionalidade Antropológica em Face do Segredo. Anuário Antropológico n. 34, 1985.

CAVALCANTI, Bruno César & ROGÉRIO, Janecléia Pereira. “Mapeando o Xangô – notas sobre mobilidade espacial e dinâmica simbólica nos terreiros afro-brasileiros em Maceió”. In: Kulé-kulé: Religiões Afro-brasileiras, Bruno César Cavalcanti, Clara Suassuna Fernandes e Rachel Rocha de Almeida Barros (Orgs.). Maceió: EDUFAL, 2008.

DANTAS, BEATRIZ Góis. Vovó Nagô e Papai Branco: usos e abusos da África no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1988.

FONTES, Larissa. Feitura de Santo – Um Registro do Secreto. Faculdade Integrada Tiradentes, Maceió, 2012.

GURAN, Milton. Apresentação. In: TACCA, Fernando Cury de. Imagens do Sagrado: entre Paris Match e O Cruzeiro / Fernando Cury de Tacca. – Campinas, SP: Editora da Unicamp, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2009.

JOHNSON, Paul Christopher. Secrets, Gossip and Gods. Oxford, Oxford University Press, 2002.

MEDEIROS, José. Candomblé. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2009.

RAFAEL, Ulisses Neves. Xangô rezado baixo: religião e política na primeira república / Ulisses Neves Rafael. – São Cristóvão : Editora UFS, 2012.

RECHENBERG, Fernanda. Imagens e trajetos revelados: estudo antropológico sobre fotografia, memória e a circulação das imagens junto a famílias negras em Porto Alegre, RS. Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Tese de doutorado.Porto Alegre, 2012.

SILVA, Vagner Gonçalves da.O Antropólogo e sua Magia: Trabalho de Campo e Texto Etnográfico nas Pesquisas Antropológicas sobre Religiões Afro-brasileiras/ Vagner Gonçalves da Sila – 1º ed., 1º reimpr. – São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006.

SIMMEL, Georg. O Segredo. (1974).In: Georg Simmel: sentidos, segredos. Simone Carneiro Maldonado (organização, traduções, comentários). – 1. Ed. – Curitiba : Honoris Causa, 2011.

_______ A Sociologia das Sociedades Secretas. (1906). In: Georg Simmel: sentidos, segredos. Simone Carneiro Maldonado (organização, traduções, comentários). – 1. Ed. – Curitiba : Honoris Causa, 2011.

TACCA, Fernando Cury de. Imagens do Sagrado: entre Paris Match e O Cruzeiro / Fernando Cury de Tacca. – Campinas, SP: Editora da Unicamp, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2009.

TEIXEIRA, Faustino e MENEZES, Renata (orgs.). Religiões em movimento: o Censo de 2010. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.

VERGER, Pierre Fatumbi, 1902 – 1996. Orixás deuses iorubas na África e no Novo Mundo / Pierre Fatumbi Verger; tradução Maria Aparecida da Nóbrega. – 6º ed. – Salvador: Corrupio, 2002.



[1] Maceió, capital de Alagoas, situada no Nordeste do país, tem mais de 1 milhão de habitantes.

[2]O antropólogo Fernando de Tacca percorreu a polêmica trajetória da produção desta reportagem e a publicou no livro Imagens do Sagrado (TACCA, 2009).

[3]As fotos foram reunidas posteriormente e publicadas no livro “O Candomblé” (2009). Foi, como dizem, uma espécie de redenção de Medeiros.

[4]Camarinha é como é chamado o espaço físico de uma pequena sala, destinada à realização do ritual de Feitura. É onde o adepto dorme e fica a maior parte do tempo durante o período de reclusão para a iniciação. “Entrar na camarinha” é uma expressão usada para se referir à realização do ritual de iniciação, ou seja, quando um iaô vai se iniciar, diz-se que ele irá “entrar na camarinha”, ou “entrar de quarto”.

[5]O trabalho resultou em minha monografia de conclusão do curso de Comunicação Social com habilitação em Jornalismo: FONTES, Larissa. Feitura de Santo – Um Registro do Secreto. Faculdade Integrada Tiradentes, Maceió, 2012.

[6] Embora utilize o termo “comunidade religiosa”, quero esclarecer que não me refiro aqui a um grupo homogêneo e estável em suas atitudes e posicionamentos, pois, como já apontei, trata-se de um ambiente permeado por conflitos e fofocas.

[7] Em Alagoas, os filhos de santo, após concluírem a obrigação que determina o fim do período de iaô, tornam-se babalorixás e iyalorixás. Os que não abrem suas próprias Casas de Culto podem iniciar seus própriosfilhos de santo na casa de seus zeladores, de modo a prolongar a rede de parentesco da Casa (estes novos filhos, no caso, tornam-se netos de santo de Pai Manoel, o líder espiritual e dono do terreiro). O Ilê Axé Legionirê, à época, contava com dois quartos de santo especiais, cada um pertencente as duas iyalorixás mais atuantes da casa, onde eram guardados os assentamentos de seus filhos. A referida neste episódio é uma delas.

[8]Palavra africana para designar os humanos, simples mortais.

[9]Neste momento fez a reverência tradicional exigida para quando se pronuncia os nomes de seus respectivos orixás ou de seus pais-de-santo, tocando o chão e em seguida a testa.

[10]Os iaôs são os recém-iniciados, que ainda não cumpriram todas as suas obrigações e devem referência aos mais velhos.

[11]Anhembi, nº12, vol. IV. São Paulo, nov., 1951.

[12]O “bolar” no santo é a demonstração pública do orixá de que quer que a o médium se inicie. O médium entra em transe e, literalmente, bola pelo chão, sai rolando pelo salão até que o babalorixá o detenha, se colocando numa posição em que o médium, deitado, fique entre suas pernas. Quando isso acontece, os ogãs cobrem o corpo desmaiado com um pano branco, o suspende nos braços e o levam para a camarinha para que se recupere.

[13]Segundo meus informantes, dentre várias lendas, acreditava-se que uma pessoa não pudesse aguentar uma incorporação de Exu. Exu sempre foi um orixá polêmico e de difícil trato, mesmo entre as religiões afro-brasileiras. Por isso, os pais e mães de santo por muito tempo temeram iniciar alguém para esse orixá. Nos dias de hoje é cada vez mais crescente o numero de adeptos consagrados a esse orixá.

[14] Entidades provenientes da umbanda e da jurema.

[15]Na linguagem popular, apilar significa o ato de amontoar coisas, pô-las umas sobre as outras manipulando o espaço para que caiba o máximo possível.

[16] Em referência à rede Globo de televisão.

[17]Cargo de alto grau na hierarquia. São as mulheres que não são médiuns, ou seja, não recebem seus orixás e auxiliam no funcionamento dos rituais.Os homens, nesta categoria, são denominados ogãs.

[18]Abiã significa “aquele que vai nascer”. É como são chamadas as pessoas que já participam do ritual, mas ainda não passaram pelo ritual de iniciação.

[19]Me refiro ao Prêmio Pierre Verger, promovido pela Associação Brasileira de Antropologia (ABA), na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada em Natal/RN. O ensaio, que intitulei “Feitura de Santo – uma narrativa artística e fotoetnográfica de uma iniciação no candomblé” foi o vencedor do Prêmio.

[20] Em referência ao episódio de repressão vivido pela comunidade de matriz africana do estado a esta data. Entrevista realizada e 10/03/2014.

[21]Essa informação foi recolhida pelo prof. Luiz Sávio de Almeida, junto a um antigo pai de santo de Maceió, e esta exposta em seu artigo “Uma Lembrança de amor para Tia Marcelina”, in Revista de Letras. Maceió: Edufal, 1980. (RAFAEL, 2004).

[22] Abreviação para “babalorixás” e iyalorixás”.

[23]Disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/Quebra_de_Xang%C3%B4, acesso em 20/05/2014.

[24]Teledocumentário produzido pela TVE de Alagoas sobre as transformações no Maracatu ocasionadas pelo Quebra de Xangô de 1912.

[25] PRANDI, R. “As religiões afro-brasileiras em ascensão e declínio”. Cadernos IHU em Formação, ano VIII, n. 43, 2012 (PRANDI, 2012 apud FAUSTINO, 2013).

[26]BIANCHETTI, Thiago Angelin Lemos. Entidades e rituais em trânsito simbólico: uma análise dos Exus no contexto afro-brasileiro e nas sessões de descarrego da IURD. UFPE, 2011.

[27]Tradução da autora.

[28]Trecho de entrevista concedida em 14/03/2014.

[29]Cargo específico desta Casa.

[30] Expressão usada para se referir ao tempo que uma pessoa possui de iniciada na religião.

[31]A expressão “bater candomblé”, é usada para se referir à modalidade mais comum, com uso de atabaques e outros instrumentos.

As rezas de ramo são práticas da religiosidade popular em que a benzedeira ou o benzedor colhe um ramo de algumas plantas medicinais específicas e, enquanto rezam, passam o ramo pelo corpo da pessoa, em espécie de “passe espiritual”.

As reuniões de mesa branca (ou rituais de caboclos) são rituais em que predominam elementos do espiritismo. Neste caso a que me refiro, os médiuns participantes sentam-se ao redor de uma mesa ornamentada com flores e imagens de santos e orixás, e entoam cantos rituais. Um público de fieis, espécie de “pacientes”, senta-se em bancos ao redor da mesa. As entidades começam a se manifestar nos médiuns e dão “passes” nos presentes.

[32]Entidades crianças, que representam e falam pelo orixá.

[33]O termo traçado quer dizer misturado. Segundo Dantas (1988), “o ‘misturado’, ‘híbrido’, é, por definição, aquele que ‘participa de duas naturezas’”.

[34]Modalidades sincréticas de cultos.

[35] Bebida sagrada base do culto chamado Jurema Sagrada.

[36]Na Casa de Mãe Neide, sete dias antes do “Toré de Caboclo”, festa pública em comemoração às entidades juremeiras, existe o ritual de preparo da bebida, restrito aos filhos da Casa. Ela é preparada pela mãe de santo e enterrada num local específico do cercado do boiadeiro, entidade da mãe de santo que comanda esta cerimônia. Na festa, então, a bebida é desenterrada e distribuída aos filhos e aos visitantes (em menor quantidade e fora do contexto ritual).

[37]Espécie de altar, local onde são colocadas as oferendas.

[38]“Jornal impresso do Grupo Universal do Reino de Deus, empresa que vem rapidamente conquistando concessões de meios de comunicação de massa no Brasil, como emissoras de rádio e televisão. A tiragem semanal do jornal atinge faixa de 2,4 milhões de exemplares, maior do que qualquer outro jornal brasileiro. O jornal tem sido apontado como aquele que melhor dialoga com a nova classe média brasileira.” (RECHENBERG, 2012).